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(FOTO/ Reprodução). |
A
Lei de Cotas (Lei n° 12.711/2012), marco histórico na luta do movimento negro e
do movimento estudantil, completará dez anos de sua promulgação em 2022 e, como
previsto em seu artigo 7°, será revisada pelo Congresso Nacional. Levando isso
em conta, é urgente que nós, estudantes, iniciemos desde já a mobilização da
população em torno desse debate, sob pena de deixarmos escorrer pelas mãos uma
década de avanços notáveis no acesso à educação superior – os quais a elite
racista que domina o país e controla o Parlamento quer desfazer –, além da
oportunidade de expandir e melhorar as políticas afirmativas já existentes.
Mesmo
antes de 2012 algumas universidades já promoviam uma política autônoma de
cotas, ancorada no entendimento da Constituição de 1988, que entende a educação
como ferramenta de desenvolvimento social, concretizando princípios
fundamentais referentes à igualdade e ao combate a desigualdades sociais, ainda
que de forma incipiente. Na UFPR, por exemplo, ainda em 2004, foi aprovada a
inclusão de cotas raciais na 2ª fase do vestibular, processo no qual o Partido
Acadêmico Renovador (PAR), que atualmente ocupa a gestão do Centro Acadêmico
Hugo Simas (CAHS) da Faculdade de Direito, teve relevante participação, em que
pese as várias limitações desse modelo inicial, incapaz de alterar de forma
efetiva a composição da Universidade.
A
Constituição Federal de 1988 abarca ideais que devem ser efetivados através de
políticas públicas, pois se demonstram centrais para a ordem social do
pós-ditadura. A igualdade é um importante valor disposto desde o início, que,
em sua modalidade formal, reconhece todos e todas como iguais perante a lei.
Porém, há a igualdade material, relativa à concepção que transborda o conteúdo
das normas, leis e valores e desafia uma conotação vazia e meramente escrita,
trazendo a perspectiva da igualdade de oportunidades e concretizando garantias
coletivas que não se pautam por segregações baseadas em características sociais,
culturais ou pessoais.
Assim,
as políticas de ações afirmativas versam sobre equidade e igualdade, valores
que devem orientar as bases do desenvolvimento social. A igualdade no plano
formal já existe, mas não nos basta. Faltam, aos negros e negras, indígenas,
pessoas com deficiência, pessoas trans e populações periféricas, as mesmas
oportunidades que determinados grupos sempre tiveram.
Com a aprovação da Lei n° 12.711/12, as políticas afirmativas são de fato institucionalizadas no sistema de entrada das universidades federais, as quais verdadeiramente se transformaram e mudaram de cor. Em 2018, pela primeira vez, o número de discentes negras e negros nas universidades públicas alcançou, pela primeira vez, a maioria das matrículas (50,3%) (IBGE, 2019). Além da população preta, foi garantido também o acesso por renda e de estudantes indígenas, assim como de pessoas com deficiência, com a Lei 13.409/2016, e o de camponeses e camponesas com o PRONERA (Programa Nacional de Reforma Agrária). Outro marco importante é o estabelecimento do SISU, que permite o ingresso através do Enem, facilitando o acesso à universidade pública.
Mesmo
com a transformação do perfil dos e das estudantes, ainda estamos muito longe
de garantir a igualdade racial no ensino superior. Isso porque as políticas
afirmativas vão se tornando escassas à medida que se avança na carreira
acadêmica, dificultando a permanência estudantil. Muitas universidades ainda
não implementaram políticas de cotas na pós-graduação e nos concursos; devido a
isso, conforme os microdados do Inep de 2018, apenas 16% do corpo docente
universitário é da negritude. Sob uma lógica semelhante, no caso das pessoas
com deficiência, apesar do estabelecimento das cotas, o mesmo acontece em
relação à permanência, ainda com o agravante da falta de acessibilidade no meio
acadêmico.
Conjuntura de ataques à educação
Somado
a todas as questões apresentadas, desde o início de seu governo, Bolsonaro tem
mostrado quão comprometido está com a agenda neoliberal desenhada para seu
mandato, sendo um dos seus maiores focos a educação como um todo, cabendo
destacar alguns de seus atos mais danosos.
Poucos
meses após sua eleição, criticou os cursos de ciências humanas em discursos e,
através do ex-ministro da educação, Abraham Weintraub, iniciou os cortes na
educação, começando com 30% nas universidades federais, em seguida bloqueando
bolsas da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes),
estendendo, por fim, o contingenciamento de verbas para toda a educação básica.
Com
a chegada da pandemia, as afrontas apenas aumentaram. O governo Bolsonaro
concedeu a Weintraub, através das Medidas Provisórias de número 914/2019 e
979/2020, o poder de nomear reitores, deixando de vincular a chapa mais votada
da lista tríplice ao cargo de reitor, e, nesta última, o impedimento da
realização do processo de consulta à comunidade para escolha dos reitores. A
primeira caducou e a segunda foi devolvida poucos dias depois, mas, durante a
pandemia, interventores foram nomeados para ocupar o cargo, estimando-se que ao
menos 20 instituições tiveram intervenção federal na escolha de suas
respectivas gestões.
Mais
recentemente, segundo a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições
Federais de Ensino Superior (Andifes), houve um bloqueio de 18,16% no orçamento
discricionário de todas as universidades para o ano de 2021, o que representa
pelo menos
1
bilhão de reais. Desde então, muitas universidades têm anunciado o risco de
fechar as portas, paralisando milhares de pesquisas e estudos extremamente
importantes, principalmente no momento pandêmico em que estamos, comprometendo
inclusive o desenvolvimento de vacinas, como no caso da UFPR.
Da
mesma forma que os ataques se fizeram presentes, o movimento estudantil se
manteve firme reagindo e mobilizando as e os estudantes para manter a autonomia
universitária, a liberdade de cátedra e os direitos conquistados tão arduamente
visando uma maior inclusão das pessoas a quem sempre fora negado acesso a esses
espaços.
Perspectivas para a revisão da Lei de
Cotas
A
revisão da Lei de Cotas tinha como objetivo possibilitar uma ampla discussão
acerca das metas alcançadas, bem como seus resultados, sua amplitude e limitações,
visando instruir um processo de melhoria e aprimoramento. Entretanto, com a
ascensão bolsonarista, o panorama para 2022 é desanimador. O Congresso, com uma
maioria marcadamente alinhada à agenda de desmonte do Estado, destruição de
políticas públicas e retirada de direitos de minorias sociais se demonstra
profundamente retrógrado e ameaça a permanência das políticas de cotas.
Através
de dados coletados pelo Radar do Congresso, plataforma desenvolvida pelo
Congresso em Foco, é possível inferir que a atual composição da Câmara de
Deputados e do Senado Federal se estabelece como uma sólida base de apoio ao
governo Bolsonaro, atingindo um índice de 76% de alinhamento na Câmara e 86% no
Senado. O chefe do Executivo possui um histórico volumoso de negação do racismo
como problema estrutural do país, tendo inclusive dito a apoiadores que sempre
questionou a política de cotas raciais, além de diversas declarações racistas
que remontam a discursos escravocratas.
Nesse
cenário, é necessário demarcar a importância do movimento estudantil e da
mobilização social em torno da defesa das políticas afirmativas que garantem o
acesso de camadas da população historicamente afastada dos espaços de prestígio
social. Precisamos nos preparar para uma importante batalha em defesa de nossos
direitos, em defesa da possibilidade de continuarmos produzindo conhecimento e
saber. A população periférica, o povo negro, as comunidades indígenas e as
pessoas com deficiência não serão novamente renegadas às margens da sociedade,
pelo contrário, serão protagonistas de suas histórias e ocuparão as
universidades.
Ainda,
é a oportunidade de denunciar a continuidade da exclusão de grupos sociais
ainda hoje marginalizados, buscando-se ampliar a política de cotas. Estudantes
transexuais, por exemplo, representam apenas 0,1% do total dos alunos e alunas
de universidades federais no Brasil, um retrato dos altos índices de evasão
escolar decorrente do preconceito e o precoce início no mercado de trabalho
informal, uma vez que muitos e muitas são expulsas de casa e se vêm obrigadas a
se prostituir, comprometendo o acesso à educação.
Reflexos
das ameaças que se colocam diante de nós já começam a ser percebidos no cenário
político: o PL 1531/2019, de autoria da deputada Professora Dayane Pimentel
(PSL-BA), propõe a remoção do critério racial de reserva de vagas, ignorando o
passado colonial e escravagista que marca nossa história, se fundando na defesa
da existência de uma ilusória “democracia racial”. Tais tentativas demonstram
os riscos que estamos correndo, pois o acesso ao ensino superior por parte da
população negra só atingiu níveis consideráveis através das políticas de cotas
e, ainda hoje, estudantes da negritude enfrentam diversas dificuldades para
acessar programas de pós-graduação em razão da quase inexistência de políticas
afirmativas, o que reforça a importância do critério racial.
A
universidade pública é instrumento de emancipação e se pauta por valores de
inclusão e igualdade, não podemos permitir que o povo, que sustenta e financia
esses espaços através da exploração de sua força trabalho, seja novamente
excluído. A fragilização da Lei de Cotas e as tentativas de enfraquecê-la não
podem prevalecer sobre o interesse da grande maioria da população, que antes
sequer imaginava estudar, pesquisar ou se graduar. Se trata de uma luta por
nossas vidas e por nossos sonhos.
_________
Texto de Amanda Bachmann, Fauzi Bakri, Lucas Monte e Matheus Riguete, do Centro Acadêmico Hugo Simas (CAHS), publicado originalmente na Alma Preta.
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