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(FOTO/ Arquivo Pessoal). |
O
professor de sociologia da Unicamp Mário Medeiros faz uma seleção de 5 autores
negros contemporâneos que, à sua maneira, explicam o Brasil
Como todas as listas, essa é igualmente difícil e problemática. Trata-se de uma seleção em que a dificuldade maior foi selecionar excelentes trabalhos para ficarem de fora. Livros de intelectuais negras e negros que tratem do Brasil existem há muito tempo em nossa história social e literária, mesmo que ignorados sistematicamente ou conhecidos apenas de um público especializado. Assim, selecionei trabalhos de intelectuais negras e negros contemporâneos, fáceis de encontrar em livrarias ou sebos, que se encontram em atividade de pesquisa e/ou que produziram há poucos anos resultados de pesquisas que eu considero como referências importantes para compreender aspectos da história social do Brasil, rever temas sobre o múltiplo mundo negro no Brasil e no exterior, que permitam revisitar trabalhos clássicos de autores negros e não negros, que avancem nas e tensionem criticamente as interpretações sobre o Brasil e sobre os negros em nosso país.
O mundo negro: relações raciais e a
constituição do movimento negro contemporâneo no Brasil
Amílcar
Araújo Pereira
O
historiador Amílcar Pereira publicou sua tese de doutoramento defendida na
Universidade Federal Fluminense, uma rigorosa pesquisa que revisita os estudos
sobre relações raciais no Brasil. Ele faz um debate sobre a ideia de democracia
racial, propondo interpretações alternativas em que intelectuais, ativistas e
movimentos negros brasileiros aparecem como protagonistas, articulados com um
complexo mundo negro nos Estados Unidos e em países africanos. Além disso, aproveitando
os dados e as entrevistas de pesquisa anterior realizada em parceria com Verena
Alberti (“Histórias do movimento negro no Brasil”, citada na lista de
‘Favoritos’ do próprio Amilcar, aqui no Nexo), o autor analisa a atuação de
homens e mulheres negros na constituição dos movimentos negros no Brasil dos
últimos 40 anos, importantes para a luta antirracista, mas também para a luta
pela democracia política, contra a ditadura civil-militar, pela ampliação dos
sentidos da cidadania contemporânea, com a valorização histórica e cultural da
população negra, pelas leis de ensino de história afro-brasileira e contra o
racismo, num debate que interessa a todos aqueles que lutam pela igualdade de
direitos.
Imprensa negra no Brasil do século XIX
Ana
Flávia Magalhães Pinto
A
historiadora Ana Flávia M. Pinto realizou, em sua dissertação de mestrado
defendida na Universidade de Brasília (UnB), uma pesquisa de fôlego. Que se
tornou um livro de enorme importância, tanto por publicizar a existência de
jornais negros em cidades como Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo
ainda no século 19, como também por colocar em xeque, para os especialistas no
assunto, questões como a cronologia da imprensa negra no Brasil, os lugares
onde ela existiu, os sentidos da associação de ativistas, intelectuais negros
em meio à escravidão e após a abolição. Seu livro ainda tem a qualidade da
fluidez da linguagem, tornando-o bastante acessível para iniciantes no assunto,
permitindo rever percepções do senso comum acerca da história brasileira e ação
de homens e mulheres negros nela, nos primórdios da luta por igualdade de
direitos entre as pessoas em nosso país, em que os negros, com suas demandas,
são protagonistas.
Vozes marginais na literatura
Érica
Peçanha do Nascimento
A antropóloga
Érica Peçanha do Nascimento foi a pesquisadora pioneira nos estudos sobre a
literatura marginal e periférica dos anos 2000 (estética e movimentos criados
em torno do escritor Ferréz e suas obras, das edições Caros Amigos: Literatura
Marginal e de saraus pioneiros, como a Cooperifa). “Vozes marginais” é
resultado de sua dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social da Universidade de São Paulo, mapeando a produção
cultural de intelectuais e ativistas periféricos nas periferias paulistanas,
seus projetos coletivos, entrevistando protagonistas de uma cena cultural e
política iniciada em São Paulo e que hoje é uma realidade incontornável para a
compreensão da história cultural, política e literária brasileira contemporânea
para qualquer interessado ou pesquisador comprometido com o assunto. Livro
igualmente incontornável como referência do assunto.
A negação do Brasil: o negro na
telenovela brasileira
Joel
Zito Araújo
Para
além de um produto comercial, a telenovela tem sido importante, desde a segunda
metade do século 20, na construção de uma imagem de si para o Brasil, por meio
de personagens e narrativas que procuram espelhar o cotidiano urbano e rural,
do passado e do presente, de valores e costumes tradicionais ou em mudança. O
livro do cineasta Joel Zito Araújo, originado de pesquisa na Universidade de
São Paulo e que também gerou um documentário homônimo, enfrenta a discussão
dessa mídia como produtora de identidade nacional, seu papel na construção e explicitação
de hábitos de diferentes classes sociais e também da manutenção de preconceitos
e discriminações, em particular sobre os negros. Num minucioso trabalho de
pesquisa em arquivos de redes de televisão (como Tupi e Globo), além de uma
bela publicização de cenas de telenovelas e de personagens vividos por atores
negros e não negros em nossas telas, o autor coloca em discussão um tema
contemporâneo da realidade de milhares de telespectadores e os sentidos
atribuídos e construídos de sua autopercepção como brasileiros.
Angola Janga: uma história de Palmares
Marcelo
d’Salete
“Angola
Janga” é um ponto alto em muitos sentidos. Alto numa carreira cheia de cumes,
do desenhista de “Noite Luz, Encruzilhada e Cumbe”. Alto na construção de uma
história coletiva com protagonistas negros e suas vidas cheias de emoção,
desejos, heroísmos, fracassos e lutas pela liberdade humana. Marcelo D’ Salete,
mestre em história da arte pela Universidade de São Paulo e professor da Escola
de Aplicação da USP, enfrentou o desafio de construir graficamente uma história
de Palmares, alicerçada em pesquisa de fontes históricas, ainda disputáveis nos
dias correntes. O processo de construção da história é também reconstrução, nos
lembra o autor. Palmares vive como memória coletiva negra e uma história de
complexa resistência na experiência brasileira. D’Salete interpreta essas
memórias e histórias, tão acionadas em diferentes momentos do século 20 para o
século 21, para uma nova geração de leitores, com a beleza, rigor e dignidade
que ela requer.
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Por Mário Medeiros, publicado originalmente no Nexo.
Mário é professor e pesquisador do departamento de sociologia do IFCH-Unicamp. Autor do livro “A descoberta do insólito: literatura negra e literatura marginal no Brasil (1960-2000)”, publicado pela Aeroplano Editora em 2013.
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