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(FOTO/ Alexandre Pereira). |
Vimos, ao longo deste ano, que a tentativa secular do Estado, de grupos que partilham privilégios sociais e das instituições de preterirem as questões raciais, supostamente, sob latência, fracassou diante da efervescência dos conflitos raciais no Brasil e no mundo e, agora, visibilizados pela grande mídia. A democracia racial nunca foi uma realidade em nosso país e a "miscigenação", sempre suscitada com a finalidade de silenciar vivências negras e minimizar as sequelas do racismo, apenas serviu para respaldar a ideia de raça e hierarquia racial na sociedade.
Por
90 anos não vimos Luiz Gama e Esperança Garcia compondo o colegiado da OAB,
senão em participações episódicas e festivas advindas de homenagens recentes. E
foi sob a inspiração desses juristas, e de tantas outras que abriram caminhos
de resistência negra e foram agentes de mudança social, que advogadas negras e
advogados negros de todas as regiões do Brasil organizaram um movimento popular
para deslocar a discussão sobre cotas raciais e paridade de gênero, da cúpula
administrativa da OAB nacional, para toda a sociedade. A advocacia negra tem
vocalizado suas demandas há décadas e não admitiria deixar de ser ouvida e
considerada no julgamento de temas que interferem diretamente na sua vida e
exercício profissional, haja vista corresponderem a formação da representação
institucional da categoria.
Após
o resultado da deliberação do Colégio de Presidentes da OAB (1 de dezembro
deste ano) e da recomendação de reserva de cotas de 15% e paridade de gênero,
as bases da advocacia negra, que se reconhecem, rapidamente, se mobilizaram
para pensar em uma OAB inclusiva e equânime para já, a fim de se somar a lutas
anteriores que (nos) construíram juristas possíveis. O julgamento das duas
pautas se avizinhava (14 de dezembro) e questões como o princípio da
anualidade, plebiscito, proporcionalidade e censo estavam sendo suscitadas como
óbices, em potencial, à imediatidade das ações afirmativas em análise.
A
decisão em torno de uma reação foi unânime porque, em sua composição orgânica,
a OAB não espelha a sociedade. A população negra e as mulheres, atualmente,
pouco ocupam cargos no sistema político da Ordem e, em algumas seccionais e
subseções, não ocupam lugar algum, sendo o quadro de ausência da advocacia
negra sensivelmente mais gravoso quando comparado a mulheres brancas e não
negras.
Produzimos
a muitas dezenas de mãos a Nota do Movimento de Juristas Negras e Negros do
Brasil Sobre Cotas Raciais e Paridade de Gênero no Sistema OAB com o intuito de
avaliar o cenário e as perspectivas, mas, sobretudo, para demarcar a nossa
posição de defesa intransigente da paridade de gênero e da reserva de cotas
raciais de 30%, no tocante aos cargos diretivos da Ordem, afirmando a
impossibilidade de fracionamento destas pautas.
A mobilização de abrangência nacional do movimento popular de juristas negras e negros seguiu fortalecida pelo apoio de 45 entidades de grande relevância social, representantes da advocacia negra, a exemplo do Instituto da Advocacia Negra Brasileira, organizações do movimento negro, como a Coalizão Negra por Direitos e instituições mistas, jurídicas e não jurídicas. A sociedade foi conclamada a declarar que "enquanto houver racismo não haverá democracia" e ouviu o chamado, nos apoiando intensamente e, mesmo sem recursos e tempo hábil, alcançamos mais de 1600 assinaturas na petição pública, na qual convertemos a Nota Técnica.
No
dia 9 de dezembro encaminhamos um Ofício ao CFOAB reivindicando a cobertura e
transmissão da sessão plenária do Conselho Federal da OAB que discutiria
paridade de gênero e equidade racial pelo canal no Youtube da OAB Nacional, em
razão da não transmissão do Colégio de Presidentes que discutiu acaloradamente
os temas. Requisitamos, também, naquela oportunidade, a concessão de
oportunidade para que juristas negras e negros que representam as bases do
sistema OAB pudessem sustentar razões e exposição dos motivos que deveriam
conduzir o CFOAB ao acolhimento integral dos pleitos de paridade de gênero e
cotas raciais de 30%.
A
OAB foi defensora das cotas no Judiciário, atuou na ADPF 186, tem em sua
estrutura Comissão de Direitos Humanos, Comissão da Igualdade Racial e Comissão
da Verdade da Escravidão Negra. Está previsto, no Estatuto da Advocacia e da
OAB, a defesa da Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de
direito, os direitos humanos e a justiça social, que atravessa,
necessariamente, a dimensão racial. Ora, a adoção de uma política afirmativa no
sistema referenda o que está previsto em sua normativa, que há muito aponta
para um caminho de enfrentamento ao abismo entre negros e não negros dentro da
instituição. A OAB é um espaço real de poder que interessa para o povo negro e
que deveria ser ocupado pela advocacia negra militante, sem tardança, sem
ressalvas quanto aos cargos, extensivo às subseções.
A advogada e pesquisadora Tatiana Emília Dias (2020), da UFBA, apresenta uma provocação assertiva sobre a ausência de pessoas negras em ambientes deliberativos e decisórios: "Quando as pessoas me perguntam 'por que os negros têm dificuldade em ocupar espaços de poder?', eu inverto a questão: Por que as instituições têm dificuldades em dar acesso às pessoas negras?".
É um
direito fundamental da advocacia negra ocupar cargos decisórios na OAB, tanto
quanto é um dever da instituição garanti-los. Tal ação seria uma medida
concreta contra o racismo institucional e implicaria num ineditismo dentro do
sistema da OAB, e do sistema de justiça. Trata-se de prática antirracista
enunciando uma mudança do perfil atual de representação majoritário, que produz
e reproduz desigualdades. E foi nesse contexto que o Movimento de Juristas
Negras e Negros reafirmou o pleito de 30% de cota racial e de paridade de
gênero como inegociáveis, aludindo a Carta das Juristas Negras entregue à
Diretoria da OAB, na III Conferência Nacional da Mulher Advogada, documento que
muitas integrantes do Movimento de Juristas Negras e Negros contribuíram com a
elaboração e subscreveu.
Na
sessão de julgamento (14), o Relator do item de cotas, o Conselheiro Federal
(ES), Jedson Marchesi Maioli votou pela fixação de 30% de cotas em caráter
transitório condicionado ao censo que indicaria os percentuais a serem
incorporados em definitivo para as seccionais e subseções e com vigência a
partir 2024, devido a anualidade. Ao longo dos debates o relator reorientou seu
voto para a proposta de 20% de cotas raciais. O Conselheiro Federal (CE) André
Costa abriu a divergência apresentando a proposta de 30% de cotas, como mínimo,
durante 10 mandatos (30 anos), para todas as instâncias da OAB.
O
Movimento de Juristas Negras e Negros promoveu sustentação oral na pauta sobre
cotas raciais através do advogado Hédio Silva Jr, que elencou os marcos legais,
precedentes judiciais e ativismo da OAB que deveriam compelir o Conselho
Federal à definição de reserva mínima de 30%, enquanto a advogada Maíra Vida
fez um breve histórico das lutas negras com incidência no sistema de justiça e
na própria OAB, na experiência da advocacia negra e do movimento negro e as
razões jurídicas para o afastamento do princípio da anualidade, vinculação das
cotas ao censo ou à lógica de proporcionalidade.
A
questão acerca da anualidade, tanto sobre as cotas quanto sobre a paridade, foi
votada destacada do mérito e, com isso, o princípio da anterioridade foi
afastado, garantindo aplicação imediata das ações afirmativas, caso julgadas
favoravelmente.
À
exceção das seccionais do MT, MS, PR, PA e ES, que votaram por 20% de cotas,
todas as demais seccionais votaram a favor do percentual de 30% de reserva de
cotas raciais. Quanto a perenidade da cota de 30%, as seccionais do PR, SC, AP,
ES, GO, MS e PB votaram pelo censo como condicionante de aferição da
proporcionalidade, em detrimento da proposta de 10 mandatos, elegendo a
proposta do Conselheiro Federal (RJ) Siqueira Castro para o trato das situações
de exceção.
O
Conselheiro Federal (SC) Fábio Jeremias, relator do item de paridade de gênero,
acolheu inteiramente a proposta paridade. A votação, por maioria, não se
confirmou unânime em virtude da oposição da seccional da PB.
O
racismo institucional, que naturaliza as hierarquizações raciais no âmbito das
instituições, consiste num padrão de reprodução cotidiana perpetuada por
agentes públicos e privados, tanto silente quanto ruidosamente.
O
dia 14 de dezembro de 2020 entra para a história das lutas negras e para a
história da OAB, que admitiu a necessidade de enegrecimento, a começar por se
abrir à escuta de vozes insurgentes e contramajoritárias que integram a
advocacia: foi assim que o Conselho Federal decidiu que será lembrado após o
término da gestão 2019-2021.
Agora,
estamos diante de um universo de desafios e possibilidades, novas propostas,
métodos, conhecimentos e competências a serem explorados pela nossa instituição
de classe. A presença de interlocutoras negras e interlocutores negros no
sistema OAB vai ser uma realidade que diminuirá a dor de estar à margem.
Seguiremos com o compromisso de acompanhar e monitorar a regulamentação e
implemento das ações afirmativas atinentes às cotas raciais e paridade de
gênero no sistema OAB.
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