Magazine Luiza promove seleção de trainees exclusiva a candidatos negros. (FOTO/ Reprodução/ Magazine Luiza). |
Diante da magnitude de protestos antirracistas ocorridos em vários cantos do mundo, puxados pelo movimento Vidas Negras Importam, o mito do “racismo reverso” parecia ter sido finalmente superado. Mas bastou uma ação afirmativa no meio corporativo para que a tese de que brancos também são discriminados fosse revisitada com estridência por ultradireitistas, conservadores e até mesmo liberais. No último sábado, apoiadores do Governo Bolsonaro levaram a hashtag #MagazineLuizaRacista ao topo dos assuntos mais comentados no Twitter em resposta ao programa trainee da rede varejista, que, em sua edição deste ano, abriu inscrições somente para candidatos negros.
Na
sexta-feira, a empresa lançou o processo de recrutamento, justificando em um
manifesto a exclusividade de vagas a recém-formados que se autodeclaram pretos
ou pardos. “Todos sabemos sobre o passado ancestral da população negra no
Brasil. A escravidão, por décadas, foi uma história que deixou reflexos sociais
que distanciam, excluem e anulam pessoas negras de oportunidades e essas marcas
podem ser sentidas em todos os espaços”, explica a descrição do programa, que
prevê salário de 6.000 reais e benefícios como bolsa para aprimoramento do
inglês. “Sabemos que não vamos consertar tudo isso sozinhos, mas assumimos a
nossa responsabilidade perante a sociedade de transformar essa história e
cooperar para um cenário mais justo trabalhando com transparência, humildade e
respeito.”
Rapidamente, as redes sociais repercutiram a ação afirmativa, sobretudo grupos de direita que passaram a recriminar o Magalu por, supostamente, praticar “discriminação contra brancos”. Parlamentares bolsonaristas, a exemplo dos deputados federais Paulo Eduardo Martins (PSC-PR) e Carlos Jordy (PSL-RJ), apontaram racismo reverso no programa trainee. Jordy, que é vice-líder do Governo na Câmara, inclusive, entrou com representação no Ministério Público pedindo providências contra a empresa por “impedir a contratação de pessoas não negras”. Sérgio Camargo, presidente da Fundação Cultural Palmares, vinculada ao Ministério da Cidadania, pede o cancelamento do programa, “caso contrário, o racismo será legalizado no Brasil”, diz.
Magistrados do ramo trabalhista também chegaram a se manifestar contra a iniciativa do Magalu. Em seu perfil no Twitter, a juíza Ana Luiza Fischer, do Tribunal Regional do Trabalho de Minas Gerais (TRT-3), escreveu que “discriminação na contratação em razão da cor da pele é inadmissível”. Ela apagou a mensagem. Por outro lado, o Magazine Luiza se ampara em nota técnica do Ministério Público do Trabalho (MPT), que, em 2018, garantiu a legalidade de contratação específica de trabalhadores negros, com base no princípio constitucional da igualdade. Em uma nova nota, publicada neste domingo, o MPT reafirmou apoio a medidas que visem a promoção de igualdade no mercado de trabalho, convocando mais empresas a aderir ao Programa Nacional de Inclusão de Jovens Negras e Negros.
Apesar das queixas impulsionadas especialmente por setores da extrema direita, a tese que indica existência de um racismo reverso é refutada por estatísticas e indicadores socioeconômicos, a começar pela própria estrutura do Magalu. Fundada em 1957, a empresa tem cerca de 40.000 funcionários, sendo 53% deles negros. Porém, 84% dos cargos de liderança são ocupados por brancos, e não há nenhum executivo negro no conselho de administração. Uma realidade que se estende à maioria das empresas brasileiras.
De acordo com levantamento do IBGE, negros são minoria (29%) nas funções de gestão e têm rendimento médio mensal 57% menor que o dos trabalhadores brancos, enquanto, entre os 13 milhões de desempregados, eles correspondem a 64%. “Algumas empresas começam a se movimentar por uma maior inserção de pessoas negras em seus ambientes de trabalho”, observa Alessandra Benedito, professora de Direito da FGV e consultora em diversidade racial nas organizações. “Mas muitas acabam contratando negros somente em posições de aprendizes e estagiários, não em cargos de decisão e poder.”
No país em que mais da metade da população (56%) é negra, a proporção subrepresentada no mercado de trabalho se inverte no recorte de dados sobre segurança. Segundo o Anuário da Violência elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 75% das vítimas de letalidade policial são pessoas negras, que representam mais de dois terços da população carcerária no Brasil. Um estudo da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro revela que 72% dos registros de torturas em prisões são praticados contra detentos negros. Em outra ponta, a educação ainda é um gargalo que inviabiliza a inclusão racial, mas que começou a ser transformada a partir da adoção das políticas de cotas nas universidades, em meados da década de 2000.
Em 2018, o número de matrículas de estudantes negros (50,3%) em universidades públicas superou pela primeira vez o de brancos. Em faculdades privadas, o percentual cai para 46%. Entretanto, a taxa da população negra que termina o ensino médio (62%) ainda é inferior à branca (78%), assim como a de negros nessa condição que chegam ao ensino superior (35%), contra 53% dos brancos. “Ações afirmativas como reserva de vagas nas universidades e bolsas do Prouni foram importantes para sensibilizar o mundo corporativo privado, que tende a achar que políticas de inclusão são apenas responsabilidade do Estado”, diz Luiz Augusto Campos, professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ e vice-coordenador do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA). “Seleções exclusivas a pessoas negras são totalmente legítimas. O que está em questão não é o processo seletivo, mas o espaço que se pretende diversificar nas empresas.”
Racismo
estrutural justifica “discriminação positiva”
Mesmo depois da abolição oficial da escravatura, em 13 de maio de 1888, milhares de trabalhadores negros continuaram sendo explorados em fazendas e polos industriais. Os que realmente se tornaram livres demoraram mais de quatro décadas para ter acesso à educação formal, com a instituição do ensino básico obrigatório no início da Era Vargas. O contexto histórico de apropriação da força de trabalho negra por brancos em posição de privilégio é um dos argumentos utilizados por militantes do movimento negro e personalidades identificadas com a causa antirracista para contestar a ideia de discriminação às avessas. “Racismo reverso não existe, é isso”, postou o ator e cantor Babu Santana ao defender o processo seletivo de trainees do Magazine Luiza.
Em
sua participação na última edição do Big Brother Brasil, ele se notabilizou por
defender direitos da população negra e cotas raciais. “Precisamos de mais
políticas públicas que incluam pessoas pretas no ramo das artes, nos negócios,
na ciência, no esporte, em todas as áreas, mas em posição de liderança e
protagonismo. A representatividade mostra que a nossa existência tem valor”,
diz Babu. No ano passado, o treinador Roger Machado, que comandava o Bahia,
também criticou difusores do mito do racismo reverso em um contundente
pronunciamento no Maracanã. “A gente tem mais de 50% da população negra e a
proporcionalidade [entre treinadores] não é igual. Se não há preconceito no
Brasil, por que os negros têm o nível de escolaridade menor que o dos brancos?
Por que quase 70% da população carcerária é negra? Por que quem mais morre são
os jovens negros?”, disse o técnico. “Dizem que estamos nos vitimizando, ou que
há um racismo reverso. É por isso que o futebol, diferentemente de outras áreas
da nossa sociedade, nos torna um pouco mais brancos. E faz com que sejamos bem
aceitos.”
Na ocasião, a Série A do Campeonato Brasileiro tinha apenas Roger e Marcão, do Fluminense, como negros entre os 20 treinadores da competição. Atualmente, mesmo se tratando de um esporte de vários ídolos negros, a proporção se mantém com Jair Ventura (Sport) e Dyego Coelho (Corinthians). Recém-demitido do Bahia, Roger Machado banca o projeto de uma editora que pretende publicar livros de escritores negros, ciente de que o futebol reproduz escassez de diversidade racial semelhante à do universo corporativo. Não há nenhum presidente de clube negro à frente de equipes da primeira divisão nem das 27 federações vinculadas à CBF. Dos 70 filiados à Associação Brasileira dos Executivos de Futebol (ABEX), somente três são negros.
No fim do mês passado, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) aprovou a distribuição proporcional de recursos partidários a candidatos negros, que, em 2018, representaram quase metade dos concorrentes a cargos no Legislativo, mas acabaram correspondendo a apenas 4% dos eleitos. Parlamentares pretos equivalem a menos de 20% da composição do Congresso Nacional. Devido à baixa representatividade, da política ao alto escalão das empresas, Luiz Augusto Campos defende que as políticas de inclusão racial devem ser ampliadas sob o conceito da discriminação positiva, que busca corrigir injustiças que afetam grupos da população historicamente desfavorecidos e alijados das esferas de poder. “Não é a mesma coisa distinguir um grupo de pessoas brancas e outro de pessoas negras”, explica o sociólogo. “Falar em racismo quando se tem uma ação afirmativa para garantir direitos a uma parcela que ocupa posição subalterna na sociedade significa garantir a manutenção da desigualdade.”
Em seu livro Quem tem medo do feminismo negro, a filósofa e ativista Djamila Ribeiro critica a retórica do preconceito contra brancos, reforçando que a definição de racismo não se limita à cor da pele. “Racismo é um sistema de opressão e, para haver racismo, deve haver relações de poder. Negros não possuem poder institucional para serem racistas. A população negra sofre um histórico de opressão e violência que a exclui. Há uma hegemonia branca criada pelo racismo que confere privilégios sociais a um grupo em detrimento de outro”, argumenta. “Acreditar em racismo reverso é mais um modo de mascarar o racismo perverso com que vivemos.”
Mesmo sem comprovação por dados ou estatísticas, influenciadores de extrema direita já recorreram ao discurso do racismo reverso em outras ocasiões, seja para atacar o sistema de cotas nas universidades ou, mais recentemente, desqualificar o movimento Vidas Negras Importam, sob o pretexto de que “todas as vidas importam”. Para Alessandra Benedito, políticas de inclusão acabam despertando reações de setores que se beneficiam da desigualdade racial. “Todas as instituições, de escolas a empresas, vêm reproduzindo o racismo de forma naturalizada. Logo, uma empresa contemplar só candidatos negros em uma programa trainee foge daquilo que seria considerado normal e gera descontentamento de pessoas que não são acometidas pelo racismo e veem seus privilégios ameaçados”, afirma a professora da FGV. “A decisão da empresa [Magalu] foi tomada ao verificar que os dados internos não apontavam para a inclusão de pessoas negras. É um bom referencial para quem não consegue acreditar na história, mas talvez seja convencido pelos números.”
Além do Magalu, que durante a pandemia se destacou pelo compromisso de não demitir funcionários e tem Luiza Helena Trajano, presidente do conselho de administração, reconhecida pelo terceiro ano consecutivo como a líder de negócios com melhor reputação no Brasil, segundo estudo da consultoria Merco, mais empresas buscam abrir espaço para a diversidade racial. A jornalista Beatriz Sanz organiza um banco de talentos negros da área de comunicação, que conta com mais de 300 profissionais, de 16 estados, cadastrado em uma plataforma disponibilizada a recrutadores. Ela conta que, desde a mobilização após a morte de George Floyd, em maio, nos Estados Unidos, a demanda de empregadores ao banco de currículos tem aumentado. “Foi quando as empresas começaram a colocar o discurso de diversidade em prática”, diz Sanz.
Em
que pese a repercussão nas redes sociais e a rejeição entre bolsonaristas, o
Magazine Luiza assegura que nada muda em seu programa trainee exclusivo a
candidatos negros. Para executivos da empresa, a medida é necessária diante do
fracasso de tentativas anteriores para diversificar o quadro de funcionários
com processos de seleção mistos. “Queremos
construir novas histórias a partir da valorização de profissionais negros
dentro do mercado de trabalho construindo uma nova história”, informa o
Magalu ao ratificar o programa, que tem inscrições abertas até 12 de outubro.
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