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Desfile da escola Mangueira, no primeiro dia do grupo especial na Sapucai. (FOTO/ Ricardo Moraes/ Reuters). |
A
Estação Primeira de Mangueira trouxe um dos mais contundentes carros alegóricos
da história do Carnaval carioca, na noite deste domingo (23). Um Jesus Cristo
negro e jovem, com cabelo platinado, crucificado e crivado de balas. Ao seu
lado, um negro, um indígena, uma mulher e um representante da população LGBTQI.
"A
Verdade vos Fará Livre" foi o samba-enredo. A passagem do Novo Testamento,
presente em João, capítulo 8, versículo 32, é a mesma citada - a torto e
direito - por Jair Bolsonaro em sua campanha eleitoral de 2018. Contudo, ela
rareou dos discursos presidenciais na mesma proporção que os nomes do faz-tudo
da família, Fabrício Queiroz, e do miliciano recém-falecido, Adriano da
Nóbrega, apareciam ao lado do de seu filho, o senador Flávio Bolsonaro em
denúncias e investigações. O desfile trouxe críticas não apenas ao presidente,
mas também ao naco fundamentalista cristão da sociedade - que não deve ser, em
hipótese alguma, confundido com a maioria dos evangélicos - que não espera um
"messias de arma na mão".
A
Verdade é que Cristo morre, todos os dias, santos ou profanos, através do
genocídio de jovens negros nas periferias das cidades. Mas também no
assassinato de indígenas, camponeses e trabalhadores, no campo, e de mulheres e
da população LGBTQI, em qualquer lugar. Para o conforto de muitos dos que se
autointitulam "homens de bem".
Caso
nascesse nos dias de hoje, Jesus seria qualquer um dos representados no carro
alegórico acima. E o mundo o mataria em seu nome.
Quando
defendi isso neste espaço pela primeira vez, há sete anos, quase apanhei na rua
(expressão que deixou de ser figurativa neste Brasil em que a intolerância saiu
do armário e foi eleita) por pessoas que estão tão dentro de suas caixinhas que
não conseguem perceber a beleza presente nas palavras fundadoras de sua própria
fé. Interpretam-nas usando a raiva e o rancor como decodificador, sendo que o
próprio Cristo disse que a chave para entende-las seria amor.
Considerando
que Jesus foi transgressor em sua época, se ele voltasse à Terra seria tudo
aquilo que é considerado inferior, marginal, blasfêmico ou de segunda classe.
Ou você acha que ele viria coberto de ouro e moraria nos Jardins ou na Barra da
Tijuca?.
Se
houver um Deus, ele ou ela não morrerá de vergonha por causa daqueles que tocam
a vida da forma que os faz mais felizes. Mas por conta dos que lançam preces e
cantam musiquinhas para louvar seu nome - para, logo depois, censurar, ofender,
cuspir, bater, esfolar, censurar e matar também em sua honra.
Esse
Deus ou Deusa pensar que falta amor no mundo, mas também falta interpretação de
texto. Pois está escrito no Evangelho de João, capítulo 3, versículo 17:
"Deus enviou o seu filho ao mundo não para condenar o mundo, mas para que
o mundo fosse salvo por meio dele".
Se
Jesus voltasse defendendo a mesma ideia central presente nas escrituras sagradas
do cristianismo (e que, por ser tão simples, são descumpridas) e andando ao
lado dos mesmos párias com os quais andou, seria humilhado, xingada, surrado,
alfinetada e explodido. Ela seria chamada de mendiga e de sem-teto vagabundo,
olhada como operária subversiva, alcunhado como agressor da família e dos bons
costumes, violentada e estuprada, rechaçado na propaganda eleitoral obrigatória
em rádio e TV, difamada nas redes sociais, censurado pela Justiça. Teria seu
barraco queimado e toda sua vida transformada em cinzas em uma reintegração de
posse. Seria finalizada como comunista, linchado num poste pela população em
nome da fé e das tradições. Receberia socos e pontapés dos hoje autointitulados
sacerdotes - um naco dos supostos representantes dos interesses de Deus na Terra
que afirmam lutar pelo direito de expressarem suas crenças, quando querem o
privilégio de vomitarem seu ódio diante daquilo que acham que pode ameaçar seu
controle sobre o povo.
E,
ao final, alguém ainda tiraria uma selfie ao lado de seu corpo morto para
postar no Instagram.
Estudei
em escola adventista por nove anos e, ao mesmo tempo, participei ativamente da
vida na igreja católica perto de casa. Carrego com carinho esses anos, pois
ajudaram a formar minha visão de mundo e meu caráter. Hoje, não sou mais
abençoado pela fé. Mas por conta do meu passado, sei razoavelmente bem o que
está escrito nos evangelhos. E o discurso de intolerância que grassa na boca de
muita gente não está na bíblia cristã, mas nas interpretações que tentam
transformar a base da ideia da dignidade humana em submissão.
Perfis
nas redes sociais que consideram um absurdo um messias negro (como se os judeus
de dois mil anos atrás fossem brancos, de olhos claros e cabelo liso...) enchem
a boca para falar que a solução para a criminalidade é "Bandido bom é
bandido morto" e, diante do atendimento a uma pessoa em situação de rua,
grita "Tá com dó? Leva para casa".
É,
meu amigo, minha amiga. Se há um inferno, agindo assim vocês vão me fazer
companhia pela eternidade.
Como
já disse aqui um rosário de vezes: se interpretássemos por uma forma mais
humana o que significa amar o seu semelhante como a si mesmo, dar a César o que
é de César e a Deus o que é de Deus, e todo o restante, entenderíamos que toda
essa violência é estúpida. O que significa amar alguém de verdade? E o que
significa submeter alguém à minha vontade?
Achei
ótima a escolha do trecho do Evangelho pela Mangueira para o seu samba-enredo.
Mas também poderia ser outro, presente no livro de Lucas, capítulo 23,
versículo 34: "Pai, perdoai. Eles não sabem o que fazem".
__________________________
Publicado
em sua coluna no Uol.
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