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Dediane Souza, mulher transexual, foi
uma das primeiras a conquistar a alteração do nome em documentos oficiais em
Fortaleza. (FOTO/ Fabiane de Paula).
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Querer
ser enxergado vai muito além da necessidade de aparecer. Para transexuais e
travestis, aliás, pode ser exatamente o oposto: é a necessidade de ter a
existência tão naturalizada a ponto de não atrair olhares, comentários ou
violência. Quando o nome condiz com o gênero no papel, esse direito fica mais
próximo. De 2014 a 2019, mais de 220 pessoas trans entraram com procedimentos
administrativos na Defensoria Pública do Estado para retificar prenome e gênero
no registro civil - primeiro passo para nascer de novo.
Há
seis anos, apenas oito solicitações foram registradas no Núcleo de Direitos
Humanos e Ações Coletivas (NDHAC) da Defensoria. Em 2018, o número de
transexuais e travestis que recorreram ao órgão para adequar o registro e as
demais documentações pessoais ao nome e gênero corretos saltou para 75 -
aumento que pode ser atribuído ao efeito da determinação do Supremo Tribunal
Federal (STF) de desburocratizar os processos de ser e existir.
Em
março daquele ano, o STF estabeleceu que as mudanças na certidão de nascimento
de pessoas trans poderiam ser feitas diretamente nos cartórios, sem necessidade
de ir ao Poder Judiciário, de fazer cirurgia de redesignação sexual ou de
apresentar laudos médicos. A decisão do STF foi regulamentada no dia 28 de
junho do mesmo ano, pelo Provimento nº 73 do Conselho Nacional de Justiça
(CNJ).
Processos
Assim
que soube da decisão, o motorista de aplicativo Carlos Ian Pinheiro, 28,
acelerou a junção dos quase 30 documentos necessários para dar início ao
processo, à época: que custou, no fim das contas, cerca de R$ 400. "Quando fui ao cartório, eu levei toda a lei,
então não tive dificuldade. Foi em torno de um mês pra ter minha certidão
correta nas mãos. Eu mesmo escolhi meu nome, em homenagem ao meu avô",
relembra Ian.
A
fase de transição do gênero designado no nascimento até o que ele se reconhece
já dura três anos - período em que presenciou diversas violações contra amigos.
"Eu mesmo nunca passei por
constrangimentos ou preconceito, porque sempre fui muito masculino. Mas sei que
ainda tem muitos homens trans que sofrem violência e passam por essas coisas",
lamenta.
O
universitário Bruno Gomes, 26, foi um deles. Só por ser quem é, teve corpo e
mente violentados pela transfobia. "Sofri
agressão por parte de três pessoas, e acabei deixando de lado o processo de
mudança do registro. Mas pra mim é muito chato já estar na transição e, na
faculdade ou em entrevista de emprego, me chamarem pelo meu nome civil. A gente
não quer ser chamado pelo nome que tá no documento, e sim pelo que a gente se
identifica", explica, em um tom de quem já precisou dizer o óbvio
tantas vezes.
Foi
justamente depois de "querer sumir" de uma sala de espera para
entrevista de trabalho que Bruno se tornou um dos 122 transexuais a
solicitarem, só no ano passado, a assistência da Defensoria Pública para
retificar o registro de nascimento - por meio do qual todos os outros
documentos podem ser alterados.
"Me chamaram pelo nome de registro, na frente
de todo mundo. Tive que levantar e me senti muito constrangido, com todos me
olhando. Foi quando decidi que deveria mudar", relata ele.
Encaminhamentos
Sob
orientação do Centro de Referência LGBT Janaína Dutra (CRLGBTJD), da Prefeitura
de Fortaleza, Bruno iniciou o processo nesta semana. "Poder fazer isso é uma conquista grande. E vai ser um renascimento. É o
que eu penso e desejo. Tô muito ansioso pra pegar esses documentos e ver tudo
mudado, respeitando quem eu sou. Não vou passar mais constrangimentos, sabe?
Quando receber tudo, vou voltar a colocar currículo das empresas. Até isso eu
tinha parado de fazer", revela. De acordo com Mariana Lobo, titular do
NDHAC, o processo de retificação dos registros civis dura, em média, três meses
- mas os transtornos causados às pessoas trans podem ir além disso.
"No começo, ainda se tinha um desconhecimento
grande dos cartórios. Hoje, já não temos mais essa dificuldade. Mas ainda
existem muitos casos de constrangimentos mesmo após a documentação retificada.
Tivemos um em que a pessoa teve problemas para alterar os dados do seguro de
saúde. Em casos assim, podemos inclusive entrar com ação de reparação de danos
morais ou até materiais", alerta a defensora pública.
Demandas
Alexandre
Alencar, vice-presidente da Associação dos Notários e Registradores do Ceará
(Anoreg/CE), reconhece que "problemas
pontuais" podem acontecer nos cartórios, mas que o desconhecimento quanto
às resoluções e problemas nos atendimentos às pessoas trans e travestis, no
geral, "não existem mais". "O que muitas vezes tem acontecido é que a pessoa está no cartório de
Fortaleza, mas nasceu em outro município, e tem dificuldade de requerer os 14
documentos exigidos", aponta.
A
busca por orientação sobre como proceder para adequar certidão, RG, título de
eleitor e todos esses papéis-de-existir à real identidade de gênero é uma das
maiores demandas no Centro de Referência LGBT da capital cearense, conforme
relata Dediane Souza, titular da Coordenadoria Especial da Diversidade Sexual
da Secretaria de Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS).
"Prestamos o auxílio inclusive com serviço
social, para compreender as necessidades dessas pessoas. Muitas não têm
condições financeiras, porque a retificação tem um custo e é burocratizada.
Ainda é um processo demorado, e alguns cartórios ainda apresentam dificuldades
para emissão. Quem tem menos condições financeiras enfrenta um trâmite muito
mais longo", critica Dediane, apontando que a solução é encaminhar os
atendimentos à Defensoria.
A
titular da coordenadoria avalia, como mulher transexual, que o processo de ser
reconhecida, vista e respeitada é a "maior disputa" de trans e
travestis, atualmente. "Até 2018, não tínhamos nossa identidade
reconhecida como cidadãs. Lutamos pela garantia dos direitos básicos da
existência. Não reconhecer as travestis e trans pelo nome e gênero pelos quais
elas se identificam é negar acesso a políticas de assistência, de transferência
de renda, ao mercado de trabalho e à política educacional por causa da
identidade. É negar a existência desses sujeitos. Ainda é um grande vexame a
gente ter que justificar, todos os dias, a nossa travestilidade e
transexualidade à sociedade", sentencia.
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Com
informações do Diário do Nordeste.
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