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A abertura do FestiPoa Literária 2019 contou com as escritoras Fernanda Bastos, Sueli Carneiro e Djamlia Ribeiro. (FOTO/Josemar Afrovulto/Divulgação). |
Homenageada
desta edição da FestiPoa Literária, a filósofa Sueli Carneiro esteve ao lado da
colega Djamila Ribeiro no Salão de Atos da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS) na noite de segunda-feira (29) para o debate que abriu o evento.
Mediado pela escritora Fernanda Bastos, o painel abordou questões como literatura
negra, mercado editorial, racismo institucionalizado e o mito da democracia
racial. Para Sueli, a homenagem que recebe em Porto Alegre significa “um momento de afirmação e reconhecimento da
legitimidade desse lugar de fala, do discurso produzido por lágrimas
insubmissas” e da “escrevivência, que
não é para adormecer os da casa-grande, e sim para incomodá-los em seus sonhos
injustos, como apontou nossa magistral Conceição Evaristo”.
Em
sua fala, Sueli destacou as motivações que guiam sua escrita. Ela contou que
começou a escrever motivada pela vontade de falar, mas que não conseguia “pela timidez resultante da deslegitimação
histórica da autoridade de fala das mulheres e das mulheres negras, em
particular”. “Como disse Bell Hooks,
mais do que qualquer grupo de mulheres, as negras têm sido consideradas só
corpos sem mente. E aqui estou eu nesta noite, realizando sonhos não ousados,
fruto da generosidade e do acolhimento, não apenas dos meus discursos, mas
sobretudo de reconhecimento de realidades e vivências cruéis que pessoas negras
experimentam nessa sociedade e contra as quais tem que estar sempre em luta,
sempre alerta, em legítima defesa”, afirmou.
Sueli
também pontuou que seus escritos são resultantes das dores causadas pelo
racismo e pelo sexismo, tanto no passado quanto no presente, e citou questões
que considera a “argamassa” de sua
literatura: “São produto de algum momento
dessa luta permanente, a qual as pessoas negras estão condenadas para assegurar
o direito à vida, sempre ameaçado, para alcançar a igualdade de oportunidades
de direitos, sempre negados; para ter o direito a uma representação justa e
para alcançar reconhecimento e justiça social”. Nesse momento, Sueli leu o
poema ‘Mãe Preta’, da anfitriã do evento, Fernanda Bastos. “Nossos passos vêm de longe, e também a
indignação que nos impulsiona a escrever, como bem nos mostra esse contundente
poema”, disse ao fim da leitura, ovacionada pela platéia.
Sueli,
que é uma das fundadoras do Geledés – Instituto da Mulher Negra, também
enfatizou que é a indignação com as injustiças e opressões que move a denúncia,
a resistência, a luta e a escrita das populações negras. Ela também pontuou que
é necessária a criação de um novo pacto racial e de gênero no Brasil, “que desaloje todas as hierarquias produzidas
pelo racismo e pelo sexismo”. “A
valorização da diversidade humana torna-se um pré requisito para a
reconciliação de todos os seres humanos. Se podemos educar as pessoas para discriminar
e oprimir será possível fazê-las aprender a respeitar, acolher e se enriquecer
com as diferenças raciais étnicas e culturais. Este é o abcesso do novo pacto
racial e de gênero que desejamos. Um país que foi capaz de criar a mais bela
fábula de relações raciais, que é o nosso mito da democracia racial, talvez
seja também capaz de um dia torná-lo realidade”, afirmou.
Já a
também filósofa e escritora Djamila Ribeiro iniciou sua fala narrando sua
relação com Sueli, a quem define como “uma
mulher autônoma, de coragem, que botou muito a cara pra bater”. Djamila
contou que descobriu a existência de Sueli enquanto trabalhava na Biblioteca
Carolina Maria de Jesus, na Casa de Cultura da Mulher Negra, em Santos. “Foi ali que eu descobri várias literaturas
de mulheres negras. E ali foi um novo mundo que se abriu pra mim e que eu me
reconheci, foi de cura também, porque a gente é muito adoecida por narrativas
que nos desumanizam”, disse.
Durante
um treinamento voltado para mulheres negras é que Djamila conheceu Sueli
pessoalmente. “Eu vi a Sueli e fiquei
encantada. Fui reencontrá-la anos depois, quando já estava então no mestrado”.
Djamila teve Sueli como exemplo para decidir mudar do curso de jornalismo para
filosofia. “E ela nem sabia que estava me
inspirando tanto”, disse. A filósofa também abordou a importância de que as
gerações mais novas reconheçam os avanços conquistados pelas mulheres das
gerações anteriores e o trabalho realizado por elas. “Às vezes as gerações mais novas acham que estão inventando a roda, mas
é importante a gente reconhecer que muita coisa já foi feita e já foi
construída”, afirmou.
Debate geracional
Ao
pertencerem a duas gerações diferentes dentro dos movimentos feministas e de
luta pelos direitos das populações negras, Sueli e Djamila enfrentaram
diferentes contextos políticos e momentos da violência racial no país. Por
isso, o evento incluiu na abertura um debate geracional entre as duas
escritoras.
Sueli
foi a primeira a falar. Ela contou que participou do movimento negro e de mulheres
durante o período da ditadura militar no Brasil. Segundo ela, era uma época em
que as mulheres negras eram a base dos movimentos, mas ficavam excluídas e
serviam como uma “plataforma de viabilização e de promoção” para mulheres
brancas e até mesmo para homens negros. “Construir movimentos políticos,
independentes e autônomos, que pudessem oferecer voz e autoridade para mulheres
negras era uma questão essencial para sairmos desse ciclo perverso, no qual as
conquistas das mulheres eram apropriadas pelas mulheres brancas em função do
racismo, e as conquistas coletivas dos movimentos negros eram apropriadas pelos
homens negros em função do sexismo e machismo”, disse.
A
escritora também afirmou que sua geração teve um papel fundamental na
desmistificação da democracia racial e em “mostrar que era uma falácia e uma
hipocrisia”. Segundo ela, ao fazer isso, sua geração rompeu com o pacto e a
etiqueta social que, até então, governava as relações raciais no Brasil. “Havia
um combinado na sociedade brasileira. As pessoas brancas racistas nos diziam ‘o
Brasil é uma democracia racial, nós vamos dizer isso e vocês negros vão fazer
de conta que acreditam. Enquanto esse pacto prevalecer nós não teremos
problemas’. E quando a gente nega isso e começa a exigir políticas de ação
afirmativa como medidas de correção de redução de desigualdades o pacto se
rompe”, afirmou. Sueli usou como exemplo para isso a criação de cotas raciais
nas universidades brasileiras. “As cotas tiraram os racistas do armário e os
organizaram. Isso também fez emergir toda violência e crueldade que esse
racismo tem”. Segundo Sueli, há uma “absoluta e crescente violência racial, que
se manifesta de diferentes formas, e que tem a sua forma mais extrema no
genocídio de jovens negros”. De cordo com a filósofa, esse não era o país que
sua geração pretendia entregar para as gerações futuras. “Nós até acreditávamos
há alguns poucos anos atrás que estávamos adentrando um círculo virtuoso de
enfrentamento das desigualdades raciais, que nos permitiria construir uma nação
mais justa e mais igualitária. Essa é a promessa que a minha geração fez para a
de vocês. Falhamos”, disse.
Djamila
discordou do pensamento de Sueli. Para ela, a geração da escritora foi
responsável por muitos avanços, inclusive por trazer essas questões para o
debate público. “O que falhou na verdade
é esse sistema racista, desigual, sexista, classista. Essa é a falha nesse
país. Quantos talentos todos os dias se perdem assassinados pela polícia,
quantos talentos todos os dias se perdem nesse país pela falta de
oportunidades. A falha nesse país já começou na colonização, e essa violência
colonial ainda acontece”, disse.
Para
exemplificar seu ponto, Djamila trouxe dados como o assassinato de um jovem
negro a cada 23 minutos, a alta taxa de mortalidade materna de mulheres negras
e a CPI da Esterilização, que em 1991 investigou a denúncia de que mulheres
negras estavam sendo esterilizadas à força. “O Estado brasileiro esterilizava forçadamente. Isso pra mim é uma forma
de genocídio e isso só foi a público e foi investigado por conta do movimento
de mulheres negras”, disse.
Para
Sueli, a geração atual herdou a tarefa de enfrentar as formas mais cruéis e
perversas do racismo: “Vai exigir
redobrada coragem, consciência e organização política para fazer frente ao
racismo que já não tem mais vergonha de se afirmar, que cada vez se aproxima do
fascismo e que tem obviamente uma clara intenção de extermínio. Organizem-se, é
em legítima defesa, porque não há mais limite para a violência racista”.
Escritoras negras
Temas
como exclusão de escritoras negras no mercado editorial também foram abordados
pelas convidadas do evento. Para Djamila, é preciso que exista mais espaço para
os talentos negros dentro da cultura brasileira, principalmente na
representação internacional do país. “Tantos
talentos se perdem, e o Brasil nunca consegue se destacar porque não é possível
que só um grupo tenha talento. A gente é um povo de maioria negra e indígena e
a gente só exporta brancos a vida inteira. Fica sempre esse pacto racista da
branquitude”, disse. Sueli citou grandes personalidades negras brasileiras,
como Machado de Assis, Cruz e Souza, Carolina Maria de Jesus e Milton Santos, e
afirmou que “em condições de absoluta
opressão, as formas exemplares de expressão de humanidade são dadas por nós
[negros]”.
Ao
final do debate, uma das perguntas feitas pela plateia questionou o papel da
filosofia e da sociologia no cenário atual do país, quando o presidente Jair
Bolsonaro fala em acabar com os recursos públicos para cursos na área. Sueli
foi quem respondeu, definindo a filosofia como “o exercício da revolução crítica”, que “em tempos de obscurantismo, precisa ser suprimida”. “É sempre assim. E nesses tempos, a
resistência tem que preservá-la. Nós vamos continuar filosofando e ensinando
filosofia, problematizando, estudando e estimulando o pensamento crítico da
sociedade brasileira. Seja no espaço público, seja no subterrâneo da liberdade”,
afirmou.
No
final do evento, o público que se dirigia à saída do Salão de Atos foi surpreendido
por um grito agudo. Tratava-se de uma apresentação surpresa do coletivo
cultural ‘Poetas Vivos’. Durante o espetáculo, três meninos denunciavam, entre
diversos temas, o genocídio da população negra pela polícia brasileira e a
violência racial. “Desculpe, mas a nossa
única opção é o livro na mão ou a bala na cara”, diziam. (Por Annie Castro,
no Sul 21).
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