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Quatro cabeças, nenhum governo: a história do Brasil em 2019. (Foto: Divulgação). |
Era
melhor que o dia não tivesse amanhecido, mas, sendo impossível, amanheceu. As
ruas da capital encheram-se de camisas da CBF, tapados acorreram aos melhores
postos, a atmosfera preencheu-se da festiva alegria dos internos de um
manicômio enfim emancipados. A “inexorável marcha do tempo” fez despontar no
horizonte o Rolls-Royce conversível modelo 1952. A despeito da história de que
tenha sido presente da rainha Elizabeth II, da Inglaterra, fora encomendado
pela Presidência por Getúlio Vargas, ensina o biógrafo Lira Neto. Na posse de
Collor, transportou o presidente eleito e o topete indomável de seu vice,
Itamar Franco. Na de Fernando Henrique, no primeiro mandato, a careca de Marco
Maciel ofereceu melhor aerodinâmica. Lula também deu carona ao vice, José de
Alencar. Dilma mandou trocar a placa do carro, de “Presidente” para “Presidenta
do Brasil”. Previdente, viajou com a filha Paula, livrando-se de ser
arremessada na pista por Michel Temer, que se acomodou em um Cadillac logo
atrás.
Por
razões de segurança, Gustavo Bebianno preferia o papamóvel, imune a tiros e
laranjas que por ventura pudessem ser arremessadas, embora ainda não fosse
época do cítrico doce. Foi voto vencido. Na manhã de 1o de janeiro de 2019,
coube mesmo ao Rolls-Royce o carreto de Bolsonaro, que fase! Enquanto o general
Mourão deslocava-se pela retaguarda a esmagar os cocôs cavalares obrados pelos
Dragões da Independência, o capitão e a primeira-dama acenavam aos libertos do
sanatório. No banco de trás, para espanto do cerimonial, havia um intruso:
Carlucho ali se aboletara, sabe-se lá como.
Carlucho
é o vereador carioca Carlos Bolsonaro, o segundo filho do presidente, a quem
deve ainda dois outros codinomes, Zero Dois e Pit Bull. Desprovido de
focinheira, mordeu o então secretário-geral da Presidência, Gustavo Bebianno,
cuja fidelidade canina a Bob Pai jamais comoveu Bob Filho, tretados ambos desde
a campanha, coordenada pela vítima. Supostamente, a razão da cizânia seria a
Secretaria Especial de Comunicação Social, a Secom, almejada pelo Pit Bull, mas
abocanhada por seu desafeto. Tão logo o pomar de laranjas do PSL começou a se
revelar um agronegócio, Bebianno, que presidiu o partido durante a campanha
fraudulenta, foi posto pela imprensa na linha de tiro.
Em
entrevista ao jornal O Globo, negou que o laranjal estaria a transformá-lo, com
o perdão da insistência no hortifrutigranjeiro, em espécie de laranja podre
dentro do governo. “Falei três vezes com o presidente hoje”, desdenhou. Com uma
única tuitada em que acusava o secretário-geral de mentiroso, Bob Filho negou
as conversas, incitou a matilha e mordeu-lhe os calcanhares. Bob Pai terminou o
serviço.
Bob Filho, o pit bull, mordeu Bebianno e incitou a matilha. Bob pai terminou o serviço
O
episódio é apenas o último a envolver em “polêmicas” os patetas Zero Um, Zero
Dois e Zero Três. Mas, pela gravidade de seu desfecho, ainda imprevisível,
instalou-se a barafunda: teremos nós (eu não) eleito Carlucho quando pretendíamos
eleger Jair? O colunista que virou a casaca, Tio Rei, viu no bebê conforto do
Rolls–Royce a chave para entender o playground em que neste momento nos
encontramos, “é preciso fazer o rapaz apear daquele Rolls-Royce para que este
governo consiga chegar a bom termo”. Outro, na Folha de S.Paulo, sugeriu os
militares, além de Sérgio Moro e Paulo Guedes, como candidatos naturais a
adultos na sala.
Enquanto
nos assalta a tentação do brado retumbante, “eu avisei”, perguntamos aos
botões: estaria o pai a usar os filhos para dizer o que pensa, ou seria o pai
manipulado por seus “garotos”? “Está claro que eles são uma coisa só, um clã
que age em acordo”, diz o cientista político Fernando Papaterra Limongi,
professor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas, em
entrevista a Carta Capital. “O problema é apenas um: o Brasil escolheu dar o
poder a um maluco completo, a alguém que deveria estar internado, uma pessoa
totalmente incapaz e despreparada.” Em editorial, até o alquebrado Estadão desceu
a lenha, arriscando-se a juntar às três cabeças de Cérbero o próprio Diabo:
“Não tendo o presidente a necessária condição técnica e administrativa para
substituir Bebianno a tempo e hora, e muito menos coragem para enquadrar seus
meninos, comete o pecado capital de deixar o Brasil ser governado por um
quadrunvirato”.
Para
compreender como se dão as coisas entre os Bolsonaro, voltemos no tempo. No
início da década de 1990, Jair lançou candidata a vereadora a esposa Rogéria
Nantes Braga Bolsonaro, a mãe dos três Zeros à esquerda. Graças ao sobrenome do
capitão, foi eleita e reeleita. Em 1997, no entanto, o casal se separou. Eis a
justificativa do marido para o desenlace, publicado à época pela revista de
fofocas IstoÉ Gente: “O relacionamento despencou depois que elegi a senhora
Rogéria Bolsonaro vereadora, em 1992. Ela era uma dona de casa. Por minha
causa, teve 7 mil votos e foi eleita. Acertamos um compromisso. Nas questões
polêmicas, ela deveria falar comigo para decidir o voto dela. Mas começou a frequentar
o plenário e passou a ser influenciada pelos outros vereadores. Eu a elegi. Ela
tinha que seguir minhas ideias. Acho que sempre fui muito paciente, mas ela não
soube respeitar o poder e a liberdade que lhe dei”.
Já
separada do marido, Rogéria decidiu tentar uma segunda reeleição. E o que fez
Jair? Lançou o filho para tomar os votos da própria mãe. E dessa forma
maravilhosa iniciou-se a carreira política de Carlos Bolsonaro, então um
estudante do Ensino Médio, eleito aos 17 anos o vereador mais jovem da história
do Rio de Janeiro. O caso foi resgatado pelo site DCM em registros e
depoimentos de Rogéria à Polícia Civil, por ocasião do espancamento do assessor
político Gilberto Gonçalves em 2000. Antes aliado de Jair, Gilberto decidira
ajudar na campanha de Rogéria. Foi atacado por três homens, enquanto distribuía
panfletos na Zona Norte do Rio.
Jair sobre a ex-mulher: “Acertamos um compromisso. Eu a elegi, tinha que seguir minhas ideias”
A
correta compreensão do “quadrunvirato” exige um mergulho nas redes sociais. “O
governo Bolsonaro acontece nas entrelinhas do Twitter”, diz a jornalista
Claudia Castelo Branco, mestre em Comunicação, Tecnologia e Mercado pela
Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo. Claudia especializou-se na análise de
imagem e desempenho em mídias digitais, e trabalhou para a Presidência nos
governos Dilma e Temer. Debruça-se hoje sobre a incrível produção de posts da
família Adams ora alçada ao poder. Os Bolsonaro moram no Twitter. Pela
espantosa frequência com que dedilham mensagens no microblog, fica-se a saber
se lhes resta tempo para alguma outra atividade. “A fraqueza de Jair Bolsonaro
está nas aparições públicas, em que é inexpressivo. Em Davos, foi visível seu
desconforto, o medo de gaguejar, o jeito robótico”, analisa. “A partir da rede
social, ele pode comandar o Brasil sem que avaliem seu despreparo ao falar, sem
ter de lidar diretamente com a imprensa e, principalmente, protegido pela
imagem que construiu no mundo virtual, a de homem valente, sincero e
autêntico.”
Carlos
Bolsonaro, o Zero Dois, é um tuiteiro frenético. Ao que parece, entende do
riscado: foi ele o principal arquiteto da estratégia de campanha do pai nas
redes sociais, motivo pelo qual desejava a Secom, que acabou sob a guarda de
Bebianno. Segui-lo no Twitter, contudo, exige a paciência de Jó, o autocontrole
de Buda e tudo o mais que possa espantar as energias negativas, folha de
arruda, pé de coelho. Suas mensagens são um compêndio de ódios, rancores,
maledicências, insinuações, distorções, preconceitos. Se o assunto for a
rebimboca da parafuseta, ele dará um jeito de transformá-lo numa intriga
odiosa. Há frases desconexas, mensagens cifradas e paranoias diversas. O
português não é o seu forte. De quando em vez, suas postagens descambam para
cenas chocantes, como o vídeo de um cachorro abatido a pauladas – pelo menos o
Pit Bull ficou do lado do cachorro, ufa, dificilmente seria o mesmo se fosse um
ser humano.
Para o cientista político Fernando Limongi, Jair é “maluco completo”. Para a analista de mídias digitais Claudia Castelo Branco, “manipulador”
No
jogo político, a fama de descontrolado confere ao Zero Dois certas atribuições
na hora de confeccionar suas “tresloucadas” mensagens. “Os tuítes de Carlos
Bolsonaro funcionam como um escudo para a família”, diz Claudia Castelo Branco.
“Ele está ali deliberadamente para se ‘sacrificar’ em nome dos outros, enquanto
busca uma autoafirmação típica de crianças que se habituaram a se submeter aos
pais, desenvolvendo dúvidas sobre a própria capacidade e vergonha pelos seus
fracassos.” Quando a queimada no laranjal do PSL ameaçou atingir o cabaré, o
presidente da Câmara, Rodrigo Maia, elevado a estadista por comparação com o
chefe do Executivo, teve “a impressão de que o presidente está usando o filho
para pedir para o Bebianno sair”. Para Claudia, bingo!
Cérbero
é o monstruoso cão de três cabeças que, na mitologia, guarda a porta do
Inferno. Por óbvio, a primeira delas é o Zero Um, distinção conferida ao agora
senador Flávio Bolsonaro por ser o mais velho dos filhos de Jair. Zero Um
formou-se em Direito, não conseguiu a carteira da OAB, mas, ainda assim,
dedicou-se a uma pós-graduação lato sensu em políticas públicas. Foi deputado
estadual no Rio de Janeiro e candidatou-se à Prefeitura em 2016 tendo como vice
Rodrigo Amorim, aquele que se tornou deputado federal depois de quebrar a placa
de rua com o nome de Marielle Franco na campanha passada (e emoldurar no
gabinete em Brasília o pedaço que sobrou). Durante a disputa, sua performance
mais notável foi um desmaio no debate da Rede Bandeirantes. A médica e deputada
federal Jandira Feghali, então concorrente pelo PCdoB, apressou-se a
socorrê-lo, mas foi impedida por Jair: “Ela vai dar estricnina para o meu
filho!” Em tempos de vacas magras e laranjas com pouco suco, Flávio pintava à
mão as camisas de campanha do pai a vereador. Recorria então às imagens do
Recruta Zero, personagem dos quadrinhos. Advêm daí Zero Um, Zero Dois e Zero
Três. Teria ainda o Zero Quatro, Renan, de 20 anos, jogador de videogame cujo
avatar prefere a alcunha de Bolsokid. Poderia ter havido também o Zero Cinco,
se não tivesse acontecido a “fraquejada” que, segundo o pai, acabou por gerar
uma filha mulher.
“Meu
pai sempre nos defendia quando fazíamos alguma arte”, contou o traquinas Zero
Um à revista Piauí em perfil do pai publicado em 2016. “Minha mãe é que era
mais durona.” Considerado a cabeça ponderada de Cérbero, Flávio foi o pivô do
caso Queiroz, o primeiro a indicar a safra recorde de laranjas. O ex-assessor e
ex-motorista Fabrício Queiroz movimentou 1,2 milhão de reais em um ano, de
maneira considerada “atípica”, segundo relatório do Coaf, o Conselho de
Controle de Atividades Financeiras.
Policial
militar aposentado, Queiroz é amigo de Jair Bolsonaro desde a década de 1980.
Trabalhou por mais de dez anos como segurança e motorista de Flávio, até ser
exonerado em outubro do ano passado. Sua filha, Nathalia, também foi
funcionária do Zero Um. Demitida em dezembro de 2016, foi nomeada para o cargo
de secretária parlamentar de Jair em Brasília menos de uma semana depois. Tinha
o dom de estar em dois lugares ao mesmo tempo, visto que o relatório de
presenças no gabinete de Bob Pai não apresenta uma única falta de Nathalia, que
também atuava como personal trainer de celebridades no Rio de Janeiro. Da conta
de Queiroz saíra um cheque de 24 mil reais destinado à primeira-dama, razão
pela qual ganhou nas redes o apelido de Micheque. Segundo o presidente, era
parte do pagamento de um empréstimo que fizera ao amigo no valor de 40 mil,
afinal o sujeito que movimenta 1,2 milhão também tem o direito a estar na
pindaíba.
Eis o modus operandi: Carlos morde, Flávio pondera, Eduardo busca os culpados, Jair manipula
Ainda
em dezembro, Queiroz faltou a dois depoimentos no Ministério Público. “Deu o
Queiroz”, sumiu, escafedeu-se, virou o novo Amarildo: “Cadê o Queiroz?” Uma
semana depois, apareceu em entrevista no SBT, que juntamente com a Record forma
o pool de assessoria de imprensa do atual governo. Justificou a movimentação
incompatível com a renda, alegando negócios que teria no ramo de compra e venda
de carros usados. “Eu sou um cara de negócios, eu faço dinheiro, comprava um
carrinho, mandava arrumar, vendia.” É possível que depois da entrevista ninguém
mais se aventure a comprar um carro usado do Queiroz. A convalescer de um
câncer tratado no Hospital Albert Einstein, refugiou-se na comunidade de Rio
das Pedras, dominada pela milícia do Escritório do Crime, suspeita do
assassinato de Marielle Franco. Mãe e esposa do chefe da organização, o PM
foragido Adriano Magalhães da Nóbrega, trabalharam por dez anos no gabinete de
Flávio, na Assembleia Legislativa do Rio. Claro que são apenas coincidências.
Zero
Um alega não ter relação com os negócios do amigo, mas preferiu “dar o Queiroz”
no dia de seu depoimento ao MP. Uma semana depois, pediu a suspensão das
investigações no STF, reivindicando o foro privilegiado. “Deu o Queiroz” também
nas redes sociais. Depois de o Coaf apontar como suspeitos 48 depósitos em
dinheiro na conta do senador em apenas um mês, a cabeça ponderada de Cérbero
saiu de cena ou quase isso. “É possível que esteja seguindo à risca a
estratégia de sair do foco, combinada a uma agenda de posts vinculados apenas
às suas ações”, diz Claudia Castelo Branco. “A fuga completa das redes não é
uma boa estratégia para os políticos. O Aécio Neves, por exemplo, não tuíta
nada desde setembro de 2016.” Aécio é um deputado-zumbi. Flávio Bolsonaro foi
escolhido o 3o secretário da Mesa Diretora do Senado. “O Brasil está mudando”,
tuitou um dia antes o procurador Deltan Dallagnol, a comentar sobre a eleição
do presidente da casa.
Zero Três em três atos: como “chanceler” em campanha, a destilar ódio com o deputado Mamãe Falei e no churrascão do Queiroz
Por
fim, há o Zero Três, o deputado federal pelo PSL de São Paulo Eduardo
Bolsonaro. Conhecido também como Bolsonarinho, disse bastar um soldado e um
cabo para fechar o STF, o que gerou uma crise com a Corte. Eleito o Bob Pai,
Bob Filho saiu em turnê internacional. Travestido de chanceler, prometeu a
mudança da embaixada brasileira em Israel de Tel-Aviv para Jerusalém, cidade
sagrada em disputa entre judeus e árabes, cumbuca na qual é prudente não meter
as mãos. Foi visto nos Estados Unidos com um boné que fazia campanha pela
reeleição de Donald Trump em 2020. Perto de sua atuação como embaixador
informal, o chanceler de fato Ernesto Araújo parece uma pessoa razoável, ainda
que belisque azulejo e atire pedra em avião. No Twitter, as publicações do Zero
Três são as mais compartilhadas pelo Recruta Zero. “Sua função é cutucar,
mandar indiretas, fabricar intrigas”, revela Claudia. “Entre os filhos, é o
calculista.” Para a analista, está claro que Carlos morde, Flávio pondera,
Eduardo “busca os culpados”, Jair manipula.
“A
elite econômica achou que poderia controlar Bolsonaro, e apostou nisso”, diz
Fernando Limongi. “Com um mês e meio de governo, porém, já se espera que vá
emergir alguém com ascendência sobre ele, e que possa encontrar o seu lugar
decorativo.” Entre os que subiram no Rolls-Royce em 1o de janeiro, talvez o
motorista. Desde que não tenha sido o Queiroz. (Por Fred Melo Paiva, na CartaCapital).
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