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Pintura do francês Jean-Baptiste Debred de 1826 retrava escravos no Brasil. Reprodução/ BBC Brasil. |
"De igual modo, em virtude dos descobrimentos, movimentaram-se povos
para outros continentes (sobretudo europeus e escravos africanos)."
É
dessa forma - "como se os negros
tivessem optado por emigrar em vez de terem sido levados à força" -
que o colonialismo ainda é ensinado em Portugal.
Do
BBC Brasil - Quem critica é a
portuguesa Marta Araújo, investigadora principal do Centro de Estudos Sociais
(CES) da Universidade de Coimbra.
De
setembro de 2008 a fevereiro de 2012, ela coordenou uma minuciosa pesquisa ao
fim da qual concluiu que os livros didáticos do país "escondem o racismo
no colonialismo português e naturalizam a escravatura".
Além
disso, segundo Araújo, "persiste até
hoje a visão romântica de que cumprimos uma missão civilizatória, ou seja, de
que fomos bons colonizadores, mais benevolentes do que outros povos europeus".
"A escravatura não ocupa mais de duas ou três
páginas nesses livros, sendo tratada de forma vaga e superficial. Também
propagam ideias tortuosas. Por exemplo, quando falam sobre as consequências da
escravatura, o único país a ganhar maior destaque é o Brasil e mesmo assim para
falar sobre a miscigenação", explica.
"Por trás disso, está o propósito de destacar
a suposta multirracialidade da nossa maior colônia que, neste sentido, seria um
exemplo do sucesso das políticas de miscigenação. Na prática, porém, sabemos
que isso não ocorreu da forma como é tratada", questiona.
Araújo
diz que "nada mudou" desde
2012 e argumenta que a falta de compreensão sobre o assunto traz prejuízos.
"Essa narrativa gera uma série de
consequências, desde a menor coleta de dados sobre a discriminação
étnico-racial até a própria não admissão de que temos um problema de racismo",
afirma.
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Segundo Araújo, livros didáticos portugueses continuam a apregoar visão "romântica" sobre colonialismo português. Foro: Jean-Baptista Debret/ Reprodução/ BBC Brasil. |
'Vítimas passivas?'
Para
realizar a pesquisa, Araújo contou com a ajuda de outros pesquisadores. O foco
principal foi a análise dos cinco livros didáticos de História mais vendidos no
país para alunos do chamado 3º Ciclo do Ensino Básico (12 a 14 anos), que
compreende do 7º ao 9º ano.
Além
disso, a equipe também examinou políticas públicas, entrevistou historiadores e
educadores, assistiu a aulas e conduziu workshops com estudantes.
Em
um deles, as pesquisadoras presenciaram uma cena que chamou a atenção, lembra
Araújo.
Na
ocasião, os alunos ficaram surpresos ao saber de revoltas das próprias
populações escravizadas. E também sobre o verdadeiro significado dos quilombos
─ destino dos escravos que fugiam, normalmente locais escondidos e fortificados
no meio das matas.
"Em
outros países, há uma abertura muito maior para discutir como essas populações
lutavam contra a opressão. Mas, no caso português, os alunos nem sequer
poderiam imaginar que eles se libertavam sozinhos e continuavam a acreditar que
todos eram vítimas passivas da situação. É uma ideia muito resignada",
diz.
Araújo
destaca que nos livros analisados "não há nenhuma alusão à Revolução do
Haiti (conflito sangrento que culminou na abolição da escravidão e na
independência do país, que passou a ser a primeira república governada por
pessoas de ascendência africana)".
Já
os quilombos são representados, acrescenta a pesquisadora, como "locais
onde os negros dançavam em um dia de festa".
"Como
resultado, essas versões acabam sendo consensualizadas e não levantam as
polêmicas necessárias para problematizarmos o ensino da História da
África."
'Visão romântica'
Araújo
diz que, diferentemente de outros países, os livros didáticos portugueses
continuam a apregoar uma visão "romântica" sobre o colonialismo
português.
"Perdura
a narrativa de que nosso colonialismo foi um colonialismo amigável, do qual
resultaram sociedades multiculturais e multirraciais - e o Brasil seria um
exemplo", diz.
Ironicamente,
contudo, outras potências colonizadoras daquele tempo não são retratadas de
igual forma, observa ela.
"Quando
falamos da descoberta das Américas, os espanhóis são descritos como
extremamente violentos sempre em contraste com a suposta benevolência do
colonialismo português. Já os impérios francês, britânico e belga são tachados
de racistas", assinala.
"Por
outro lado, nunca se fala da questão racial em relação ao colonialismo
português. Há despolitização crescente. Os livros didáticos holandeses, por
exemplo, atribuem a escravatura aos portugueses", acrescenta.
Segundo
ela, essa ideia da "benevolência do colonizador português" acabou
encontrando eco no luso-tropicalismo, tese desenvolvida pelo cientista social
brasileiro Gilberto Freire sobre a relação de Portugal com os trópicos.
Em
linhas gerais, Freire defendia que a capacidade do português de se relacionar
com os trópicos ─ não por interesse político ou econômico, mas por suposta
empatia inata ─ resultaria de sua própria origem ética híbrida, da sua
bicontinentalidade e do longo contato com mouros e judeus na Península Ibérica.
Apesar
de rejeitado pelo Estado Novo de Getúlio Vargas (1930-1945), por causa da
importância que conferia à miscigenação e à interpenetração de culturas, o
luso-tropicalismo ganhou força como peça de propaganda durante a ditadura do
português António de Oliveira Salazar (1932-1968). Uma versão simplificada e
nacionalista da tese acabou guiando a política externa do regime.
"Ocorre
que a questão racial nunca foi debatida em Portugal", ressalta Araújo.
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Livro didático português diz que escravos africanos "movimentaram-se para outros continentes." Marta Araújo/ Reprodução BBC Brasil. |
'Sem resposta'
A
pesquisadora alega que enviou os resultados da pesquisa ao Ministério da
Educação português, mas nunca obteve resposta.
"Nossa percepção é que os responsáveis
acreditam que tudo está bem assim e que medidas paliativas, como festivais
culturais sazonais, podem substituir a problematização de um assunto tão
importante", critica.
Nesse
sentido, Araújo elogia a iniciativa brasileira de 2003 que tornou obrigatório o
ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena em todas as escolas,
públicas e particulares, do ensino fundamental até o ensino médio.
"Precisamos combater o racismo, mas isso não
será possível se não mudarmos a forma como ensinamos nossa História",
conclui.
Procurado
pela BBC Brasil, o Ministério da Educação português não havia respondido até a
publicação desta reportagem.
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