Quando
em meados de 2013, eu discursava no Alto Comissariado de Direitos Humanos da
ONU, em Genebra, na Suíça, sobre o combate ao trabalho escravo no Brasil, o
País completava dez anos de criação do Cadastro de Empregadores – a chamada
lista suja –, que tinha como objetivo dar transparência às ações do poder
público no combate ao trabalho escravo, e também completava dez anos de
existência do Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo.
CartaCapital - O
Brasil era visto como modelo mundial em ações sobre o tema e na ocasião, fui
convidado, porque havia acabado de aprovar a lei paulista, que a própria ONU
reconhecia como referência internacional em termos de legislação
antiescravagista, que cassa o ICMS das empresas flagradas na exploração da mão
de obra análoga à de escravo no Estado de São Paulo. Com muito entusiasmo,
estávamos assistindo o valor da vida se sobrepor ao valor do lucro a qualquer
custo.
Como
se fosse hoje, me lembro de poder afirmar ao Alto Comissariado que “meu país
contribuía para a busca da igualdade e pela dignidade do trabalhador,
garantindo que a ganância pelo lucro não seria maior que valor da vida de um
ser humano”. Bom, isso foi em 2013. De lá para cá, um bom volume de água já rolou
por baixo da ponte.
Apesar
de todo o reconhecimento internacional pelos esforços engendrados no combate à
chamada escravidão moderna, o governo brasileiro vem dando largos e céleres
passos para trás.
Há
mais de dois anos, a lista do trabalho escravo não é divulgada. Primeiro houve
decisão de ministro do STF que barrou a divulgação da lista, em dezembro de
2014, depois a decisão foi derrubada no próprio STF em 2016, porque as regras
que embasaram o questionamento da Associação Brasileira de Incorporadoras
Imobiliárias (Abrainc), criadas em 2011, haviam sido reformuladas por normas
administrativas publicadas em 2015 e 2016 e portanto, os questionamentos não
tinham consistência.
Para
se ter uma ideia, uma portaria do Ministério do Trabalho permitiu que deixem a
“lista suja” as empresas que assinarem acordos de ajustamento de conduta
mediados pela Advocacia-Geral da União.
A
título de curiosidade, vale registrar que entre as construtoras que fazem parte
da Abrainc estão Andrade Gutierrez, Moura Dubeux e Odebrecht que já foram
citadas em noticiário pelo Ministério Público do Trabalho por uso de trabalho
escravo.
A
lista suja, importante enfatizar, é considerada um dos principais instrumentos
de combate ao trabalho escravo e para diversos especialistas é uma ferramenta
que deveria servir de modelo para outros países. Aqui no Brasil, a lista suja
serve para que empresas e bancos públicos neguem créditos, empréstimos e
contratos a fazendeiros e empresários que usem trabalho análogo ao de escravo.
Sair desse tipo de radar interessa a muitos que visam o lucro a qualquer preço.
É ou não é?
O
que estamos assistindo em nosso país é a transparência cedendo lugar à omissão.
É o direito do cidadão dando lugar aos interesses de poderosos. A lista suja
virou tema de embate judicial. Em um dia, por recurso impetrado pelo Ministério
Público do Trabalho, sua divulgação é garantida por liminar e menos de 24 horas
depois, a ordem judicial é cassada.
Interessante
observar que enquanto um desses movimentos acontecia, o Estado brasileiro era
condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) a indenizar um
grupo de 128 trabalhadores rurais submetidos a condições de escravidão no Pará,
sendo este o primeiro caso de escravidão moderna julgado pelo tribunal internacional.
O
Brasil foi considerado conivente com o trabalho escravo na fazenda de criação
de gado Brasil Verde.
Estamos
falando, portanto, de um cenário em que o trabalho escravo nem de longe caminha
para erradicação e no que depender das discussões que avançam no país, ficará
ainda mais distante disso.
É
só acompanhar com maior atenção o que parcela dos legisladores de Brasília
quer. Segundo o Código Penal Brasileiro, o trabalho análogo ao escravo é
caracterizado por quatro elementos: condições degradantes de trabalho,
incompatíveis com a dignidade humana; jornada exaustiva, na qual o trabalhador
é submetido a esforço excessivo ou sobrecarga de trabalho que acarreta a danos
à sua saúde ou risco de vida; trabalho forçado, em que a pessoa é mantida no
serviço através de fraudes, isolamento geográfico, ameaças e violências físicas
e psicológicas, e servidão por dívida, fazendo o trabalhador contrair
ilegalmente um débito. Os elementos podem vir juntos ou isoladamente.
Vale
ressaltar que a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Conselho de
Direitos Humanos das Nações Unidas apoiam o conceito utilizado no Brasil. Mas
eu desconfio que nossos congressistas, ou pelo menos a bancada ruralista e
aqueles ligados ao empresariado, estão dando de ombros para o que pensam as
organizações internacionais.
Pelo
menos três projetos de lei, em tramitação na Câmara dos Deputados e no Senado,
querem retirar os termos "jornada exaustiva" e "condições
degradantes de trabalho" desta definição.
A
eles, reproduzo o que disse William Wilberforce em debate sobre o tráfico
negreiro na Câmara dos Comuns, em 1789: “Esta Câmara terá de decidir, e
justificar diante de todo o mundo, e de suas próprias consciências… sua
decisão.”
Como
escrito no início deste artigo, há menos de quatro anos nós celebrávamos a
visão que o mundo tinha do Brasil, por todas as demonstrações contundentes e
vigorosas que o país vinha dando no combate a uma das piores violações dos
direitos humanos, o trabalho escravo.
Mas
hoje em dia, estamos privados da divulgação da lista suja; a erradicação da
escravidão moderna no Brasil corre sérios riscos se o conceito de trabalho
escravo for subvertido e a lei de minha autoria, que me levou a discursar na
ONU em 2013, foi questionada no STF por meio de uma Ação Direita de
Inconstitucionalidade, em 2016, pela Confederação Nacional do Comércio de Bens,
Serviços e Turismo (CNC).
Coincidência
ou não, no mesmo ano, pela primeira vez, uma ação judicial do Ministério
Público do Trabalho pleiteia a aplicação da lei Bezerra, como é conhecida a
lei, para cassar o ICMS da M.Officer, condenada em primeira instância, por
danos morais e dumping social pela prática de trabalho escravo em São Paulo.
Rogo
para que o que estava em sólida construção em nosso país não se torne, em
breve, ruínas, porque será a evidência de que alguma coisa está fora da ordem
em relação a valores e à vida.
![]() |
Trabalhador resgatado em condições de escravidão em carvoaria no Pará, em 2014. Foto: MPT/Pará. |
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Ao comentar, você exerce seu papel de cidadão e contribui de forma efetiva na sua autodefinição enquanto ser pensante. Agradecemos a sua participação. Forte Abraço!!!