Uma
rebelião anunciada. Um grupo de cardeais manifestou publicamente preocupação
com os ensinamentos do papa Francisco, acusando o pontífice de causar confusão
em relação a assuntos-chave para a doutrina católica.
Em
carta divulgada nesta semana, os sacerdotes questionam o papa por encorajar a
Amoris Laetitia (Alegria do Amor), documento que é uma tentativa de abrir novas
portas para católicos divorciados e tornar a Igreja mais tolerante com questões
relacionadas à família.
Publicado
originalmente no Uol
A
rigor, a carta não é nova: os cardeais a enviaram ao papa em setembro, com
cinco perguntas específicas que exigem apenas um "sim" ou um
"não" como resposta. Eles querem esclarecer o que consideram dúvidas
ou imprecisões, no que diz respeito "à
integridade da fé católica ".
A
novidade é que agora eles decidiram tornar seu questionamento público.
Os
religiosos, representantes de setores mais conservadores do catolicismo,
sugerem que o papa criou uma "grave desorientação e confusão entre os
fiéis". E pedem a ele uma resposta para as "interpretações
contraditórias" decorrentes de seu tratado sobre o amor.
Pano de fundo
Assinada
por quatro cardeais, a carta representa um sinal claro de dissidência, que
reflete o descontentamento dos setores mais conservadores da Igreja.
Dos
signatários, três são cardeais aposentados: os alemães Walter Brandmüller e
Joachim Meisner e o italiano Carlo Caffarra. O americano Raymond Leo Burke,
único que ainda está na ativa, é crítico frequente do papa Francisco.
Eles
afirmam que decidiram tornar a carta pública após esperar dois meses por uma
resposta do pontífice que nunca chegou.
Mas,
por trás da carta, o que se observa é uma rivalidade latente entre setores da
Igreja, que já tinha sido esboçada em abril deste ano, quando a Laetitia Amoris
foi publicada.
Com
260 páginas, o tratado é um guia para a vida em família e propõe que a Igreja
aceite algumas realidades da sociedade contemporânea.
Ao
invés de fazer críticas, o documento convida os sacerdotes a tratarem com compaixão,
por exemplo, os católicos divorciados que voltam a casar, dizendo que "ninguém pode ser condenado para sempre.
"
Trata-se
de uma das tentativas mais contundentes do papa Francisco em tornar a Igreja
Católica mais aberta e inclusiva para seu 1,3 bilhão de fiéis no mundo.
Alguns
religiosos afirmam, no entanto, que a Laetitia Amoris está cheia de imprecisões
que dão origem a interpretações contraditórias da doutrina católica.
De
acordo com especialistas, os cardeais não escolheram tornar a carta pública
agora por acaso. A divulgação aconteceu logo após o vazamento de uma
correspondência do papa com os bispos de Buenos Aires, sua terra natal, em que
o pontífice sugere uma interpretação do seu tratado, considerado uma
"heresia" por um dos cardeais signatários.
Em
particular, o polêmico capítulo oito de Amoris laetitia, que fala da
possibilidade dos divorciados que voltam a se casar em cerimônias civis, sem
conseguir a anulação da união religiosa, receberem a comunhão.
A
Igreja proíbe a comunhão de divorciados há séculos, por considerar como
"irregular" ou ato de adultério toda tentativa de se constituir um
casal após uma separação, a menos que se abstenha de relações sexuais e a
convivência seja "como irmão e irmã".
A
Amoris laetitia não altera a doutrina, mas abre brechas para que os bispos de
cada país a interpretem de acordo com a cultura local e avaliem cada caso.
Para
o papa Francisco, há fatores que limitam a "responsabilidade e culpa" do divorciado, então a "Amoris laetitia abre a possibilidade de
acesso aos sacramentos da reconciliação e da Eucaristia".
"Não há outra interpretação",
informou o pontífice, em sua carta aos bispos argentinos.
Aos olhos do público
A
carta dos cardeais dissidentes, divulgada na segunda-feira, questiona o papa
especificamente sobre esta questão.
Eles
o fazem por meio de dilemas, questões teológicas que exigem uma resposta
positiva ou negativa, e que são um mecanismo para tirar dúvidas sobre temas
relacionados aos sacramentos ou padrões morais.
O
primeiro dilema questiona se, ao contrário do que foi estabelecido por papas
anteriores, "agora é possível
perdoar" ou "dar a comunhão
a uma pessoa que, embora unida por um casamento, vive com outra como marido e
mulher", o que contradiz expressamente a encíclica do papa João Paulo
II de 1981.
De
acordo com os cardeais, a falta de resposta do pontífice a essa e outras quatro
questões levou à decisão de tornar a carta pública, diante da sua "consciência de responsabilidade pastoral."
Os
sacerdotes negam, no entanto, que se trate de um ataque "conservador" contra setores "progressistas" da Igreja, ou uma
"tentativa de fazer política" ou de se rebelar contra o papa.
As entrelinhas políticas
Para
os teólogos mais conservadores, os ensinamentos modernos do papa sobre as
famílias e divorciados católicos são, em parte, "sacrilégio" e "podem
justificadamente ser considerados hereges", como sinalizou Steve
Skojec, cofundador e diretor da publicação católica One Peter Five.
Eles
veem o tratado como um movimento do pontífice para afrouxar as normas morais
que regem os fundamentos da Igreja.
Outros
religiosos acreditam, no entanto, que a Amoris laetitia não tem peso suficiente
para alimentar uma revolta entre os cardeais, muito menos o vazamento da
correspondência do papa com os bispos portenhos.
A
verdade é que a carta dos cardeais não é a primeira interpelação ao líder do
catolicismo. Em julho, 45 teólogos e sacerdotes assinaram outro documento,
dirigido ao Colégio dos Cardeais, exigindo esclarecimentos do papa Francisco.
Questões
relacionadas ao divórcio - assim como à homossexualidade, à educação sexual, à
desigualdade econômica, à responsabilidade no combate às mudanças climáticas e
outros temas sensíveis para a hierarquia católica - vêm expondo a cisão entre o
papa e os setores mais conservadores da Igreja.
"O papa não mudou a doutrina, mas abriu as
portas para uma maior conexão com os católicos em questões como o divórcio,
para que sejam analisados casos individuais", afirma a jornalista
Caroline Wyatt, responsável há muitos anos pela cobertura de temas religiosos
na BBC.
"Os conservadores dizem, por sua vez, que o
papa abre caminho para um futuro caos, ao introduzir a ideia de que uma solução
única para todos não deve ser o caminho a seguir dentro da Igreja".
No
outro extremo, diz Wyatt, estão os liberais, também infelizes. Mas, neste caso,
porque não consideram suficiente o processo tardio de modernização da Igreja:
esperam "algo que o papa nunca será
capaz de entregar."
![]() |
O cardeal Raymond Leo Burk, em Roma (Itália), Foto: Alessandro Bianchi/Reuters. |
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Ao comentar, você exerce seu papel de cidadão e contribui de forma efetiva na sua autodefinição enquanto ser pensante. Agradecemos a sua participação. Forte Abraço!!!