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Só ela nos separa dos incapazes de sonhar e cansados de viver. Só ela gera o conflito necessário para frear nossa corrida rumo à catástrofe. |
Por
Nuno Ramos de Almeida | Imagem: Sebastião Salgado
Where
climbing was and bright
is
darkness and to fall
(now
wrong’s the only right
since
brave are cowards all)
E. E. Cummings
Na
obra-mestra de David Fincher, The Fight Club, há uma cena-chave em que Tyler
(Brad Pitt) quer acordar para a vida Jack (Edward Norton) queimando-o com
ácido, enquanto lhe diz, agarrando-o: “Este
é o maior momento da tua vida e tu não estás cá, vais perdê-lo.” Para Jack,
a violência é divina, usando o conceito de Walter Benjamin, quando nos permite
descobrir o nosso corpo e realidade pela dor, despertando-nos de um mundo
anestesiado onde vivemos. Um mundo em que somos espetadores de sofá e
interagimos com cliques, nos meandros de um qualquer ato de consumo.
O
“projeto destruição” descrito no
filme, esta irrupção aparentemente anárquica de toda a violência, permite um
renascer nas ruínas da desordem. A destruição de todos os arquivos financeiros,
centros de poder fáticos, seria esse novo big bang.
A
história mostra-nos, desde o início dos tempos, como a violência é uma dinâmica
imanente às grandes rupturas. É quase sempre pela violência que o gesto
revolucionário lança as sementes de algo novo, de uma nova ordem.
A
própria constituição do político como escolha e alternativa está ligada a esta
definição de inimigo. Não há ato político sem esse gesto.
O
mundo em que vivemos castrou-nos as escolhas, fazendo substituir a ideia de
conflito pela ideia da “tolerância”.
Contra
um mundo sem paixões ou compromissos, é preciso manter-se intolerante com as
desigualdades, e com a capacidade de constituir um novo conflito e fabricar uma
nova hegemonia, terá condições de evitar esta corrida para a catástrofe.
“Há muito tempo, Friedrich Nietzsche percebeu
que a civilização ocidental estava a caminhar em direção ao Último Homem, uma
criatura apática sem grandes paixões nem compromissos. Incapaz de sonhar,
cansado de viver, esse homem não corre riscos, procurando apenas o conforto e
segurança”, escreve o filósofo Slavoj Zizek.
A
“tolerância” mascara o conflito social e minimiza a luta na conquista dos
próprios direitos. Se disséssemos em 1 de Dezembro de 1955 a Rosa Parks, a
mulher que na cidade de Montgomery se recusou a dar o lugar do ônibus a um
branco, como mandavam as regras da segregação, que ela procurava “tolerância”,
ter-nos-ia mandado bugiar. O seu gesto, que lhe custou a prisão, provocando um
conflito onde só havia sujeição, era a afirmação de um direito, não de tolerância.
“Estou cansada de ser tratada como uma pessoa de segunda classe”, disse ela ao
condutor.
Vivemos
num mundo dividido em condomínios privados e subúrbios tendencialmente
selvagens. São assim as grandes cidades; é assim a divisão entre um espaço
organizado, envelhecido, do Primeiro Mundo, e o espaço falido e desordenado dos
países educados à bomba. Nos espaços marginais contidos pela violência do
Estado ou dos exércitos apenas parecem campear os bandidos e os
fundamentalistas. Como se lê no “Segundo Advento” de William Butler Yeats, “aos
melhores falta convicção e aos piores sobra apaixonada intensidade”.
Esta
oposição entre bombardeamentos e fundamentalistas que se alimentam
reciprocamente é incapaz de ultrapassar a divisão entre espaços crescentemente
desiguais: de um lado, os espaços civilizados, vigiados, e por outro lado os
espaços selvagens, onde sobreviverá um número crescente de humanos em condições
sub-humanas. A sua dinâmica pressupõe essa divisão e justifica-se com ela.
Só
uma nova violência ligada a um projeto intolerante com as desigualdades, e com
a capacidade de constituir um novo conflito e fabricar uma nova hegemonia, terá
condições de evitar esta corrida para a catástrofe.
Estamos
num momento de transição. O mundo que vivemos não tem condições e não
conseguimos ver as alternativas possíveis. Uma coisa é certa: elas não são
possíveis sem uma ideia de intolerância à desigualdade e possibilidade de ação
violenta. A violência é o gesto que nos permite mostrar a injustiça de uma
situação.
Numa
das tragédias clássicas do teatro grego, de Sófocles, Antígona opõe-se às leis
da cidade que a impedem de enterrar o irmão, que combateu pelas tropas
inimigas. Para ela, as leis da cidade não estão acima do dever. À medida que se
desenrola a tragédia, o tirano Creonte vai tentando quebrar a jovem e obrigá-la
a cumprir a sua lei, sem o conseguir. A recusa de Antígona custa-lhe a vida,
mas o seu sofrimento vai derrubar a tirania, mostrando a irracionalidade de um
poder repressivo que até ali estava disfarçado na vida de todos os dias. Há
milhares de anos, como agora, a liberdade vale mais que os repressores de
turno. Basta um gesto para o perceber.
Ao
contrário dos contos de fadas ou dos filmes em que se come pipocas, nada obriga
a que depois de uma tragédia haja um final feliz. Mas na nossa liberdade está
inscrita a possibilidade de mudar as coisas. Por vezes, basta um gesto
corajoso.
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