O
sociólogo, cientista político e colunista da RBA Emir Sader deu entrevista
nesta quinta-feira (18) à jornalista Marilu Cabañas, da Rádio Brasil Atual, na
qual analisa o anúncio da retomada das relações entre Cuba e Estados Unidos. O
colunista afirma que falta terminar com o bloqueio econômico à ilha e que o
reatamento entre os países pode acelerar o processo de devolução de Guantánamo
aos cubanos, ocupada desde o século 19: "Lá existem 130 presos, metade deles são considerados perigosos,
teoricamente não poderiam voltar para os Estados Unidos, porque a Câmara
decidiu que eles não poderiam estar em território norte-americano, mas é um
problema menor comparado a essa virada espetacular de página que se deu ontem
na normalização de relações entre os dois países".
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Sader sobre a alfabetização em Cuba: "não foi só um processo educacional, mas de consciência política". |
Veja
a seguir a íntegra da entrevista:
Os presidentes dos Estados Unidos,
Barack Obama, e de Cuba, Raúl Castro, anunciaram nesta quarta-feira (17)
mudanças históricas nas relações entre os dois países. Lembrando que o país
caribenho sofre embargo desde 1961, o que está mudando entre os dois países?
Na
prática, acaba sendo o fim do conflito como ele existiu durante toda a Guerra
Fria. Conforme o título do livro do Fernando Morais (Os Últimos Soldados da
Guerra Fria, de 2011) são os últimos soldados da Guerra Fria esses cinco
cubanos que agora voltaram para o país e aquela Guerra Fria terminaria aí.
Cuba
sempre considerou que a chance de normalização das relações se daria num
segundo governo de um presidente democrata. O Jimmy Carter não teve segundo
mandato, o Clinton teve um conflito maior, houve intensificação no final do
segundo mandato dele de ações contra Cuba, um avião que soltou panfletos em
Havana; e aí piorou a relação no final desse governo em vez de melhorar.
E
agora se confirma essa possibilidade, a ideia de que um governo democrata que
já não depende tanto do lobby cubano em Miami teria mais autonomia. Claro que
passou por outras circunstâncias, e que nesse caso até mesmo pela liberação de
um empresário, pelos três cubanos que ainda estavam presos, mas não foi
simplesmente a libertação, quer dizer, finalmente, o Obama tomou a decisão e
virou essa página, pois ele tinha se comprometido no começo do seu primeiro
mandato em terminar essa situação de conflito absolutamente anômala em relação
a Cuba.
Foi
uma espinha na garganta dos Estados Unidos, a ideia de que tivesse um regime
socialista a 120 quilômetros, como a distância de São Paulo para Campinas, e
ele não conseguir destruir (o regime cubano); a ruptura de relações e o
bloqueio parte disso, da ideia de asfixiar Cuba.
E
a ilha ficou de fato extremamente isolada no começo, todos os países da América
Latina romperam relações, salvo o México, mas o México só mantinha relações
diplomáticas. Para comprar um palito, Cuba tinha que comprar na Inglaterra, na
Espanha, esperar, ou comprar na União Soviética, era uma situação de
precariedade muito grande.
Ao
longo do tempo, os países, inclusive o Brasil, foram rompendo essa situação e
estabelecendo relações com Cuba. Se no começo a ilha estava isolada, no fim
desse processo quem estava isolado eram os Estados Unidos, quer dizer, desde
1992, as condenações ao bloqueio nas Nações Unidas fizeram com que apenas
eles (Estados Unidos), Israel e alguma
ilha sem nenhuma importância no Pacífico votassem juntos.
Era
uma situação que reverteu contra os Estados Unidos, mas que era mantida porque
era uma questão meio que de princípios. Mais de dez presidentes disseram que
iam derrubar o governo do Fidel Castro, e agora de Raúl Castro. Olha a lista de
presidentes desde o Kennedy até hoje, então, agora se pode dizer que Cuba
ganhou esse enfrentamento, porque os Estados Unidos confessaram que a ruptura
de relações não teve eficácia, mas ainda faltam várias coisas.
Falta
terminar com o bloqueio, que é uma decisão da câmara norte-americana, portanto,
com maioria republicana, é um tema que ainda tem que ser discutido; os
republicanos a princípio se manifestaram contra a atitude tomada pelo Obama.
E
falta Guantánamo, que era território cubano, e os Estados Unidos, quando
intervieram no fim do século 19 para impedir que Cuba expulsasse a Espanha e se
tornasse independente, sob o pretexto de pacificar as relações, ficaram com a
base de Guantánamo, que se tornou uma base militar e hoje é um presídio, de maneira
absolutamente indevida.
Até
um certo momento, Cuba colocava essa questão para normalizar as relações,
depois, em um gesto de boa vontade, aceitou que as relações fossem normalizadas
com esse absurdo, que é um pedaço de seu território ocupado militarmente pelos
EUA.
Agora,
certamente esse tema volta à baila, e também coincide com um problema que Obama
quer resolver até o fim do seu mandato. Lá existem 130 presos, metade deles são
considerados perigosos, teoricamente não poderiam voltar para os EUA, porque a
Câmara decidiu que eles não poderiam estar em território norte-americano, mas é
um problema menor comparado a essa virada espetacular de página que se deu
ontem na normalização de relações entre os dois países.
Essa reaproximação entre os dois
países é um processo que vem se desenvolvendo já há alguns meses, dizem que com
a ajuda do papa Francisco. O que o papa tem a ver com essa história?
Eu
acho que foi na fase final. O encarregado dessas negociações, que era o Ricardo
Alarcón, cubano que era presidente da Assembleia de Poder Popular, deixou de
ser parlamentar, mas continuou com essa responsabilidade; ele sempre disse que
esse empresário (Alan Gross) era a grande parada para eles conseguirem resolver
o problema, então, já vem de 2009 essa ideia de que eles pegaram um personagem
graúdo, por ser um empresário que foi levar aparelhos de transmissão e
comunicação para setores da oposição de maneira ilegal.
Então,
é uma coisa que vem já há um tempo. Diz-se até que a deterioração da saúde dele
acelerou as negociações e significativamente, porque ele é um cara que tem um
papel importante no mundo, o papa também participou dessa fase final.
O
Raúl Castro agradeceu as autoridades canadenses, pois houve negociações no
Canadá em algum outro momento, mas certamente o papa foi importante talvez até
para acelerar a realização desse gesto político e diplomático importante; não
se menciona o papel dele, certamente deve ter sido um chamado deles para ajudar
nessa fase final.
Apesar de todos os problemas do
embargo, Cuba se destaca na área da saúde e da educação. Como é que isso foi
possível?
Foi
possível pela priorização. Primeiro que o sistema socialista tornou o direito
igual para todos. E o setor é totalmente estatizado. A saúde é absolutamente
gratuita para todos e a educação também.
Logo
no começo da revolução, o governo chamou os estudantes que quisessem participar
do processo de alfabetização para suspender as aulas na universidade e
participar; eles participaram maciçamente e foi aí que a juventude cubana
conheceu o povo cubano, porque a participação não foi maciça no processo de
guerrilha. E ai se deslocaram para Sierra Maestra para conhecer o povo cubano e
alfabetizá-lo. Não foi só um processo educacional, mas de consciência política
também.
E
sempre foi um tema prioritário, veja, a Bolívia, que é um dos países mais
pobres do continente, acabou com o analfabetismo porque tornou prioritário o
tema, então, jogou esforços essenciais aí, com a participação dos
alfabetizadores cubanos. Então, na verdade, o essencial não é pobreza ou
riqueza, mas a prioridade que se dá ao tema.
Mesmo
na operação através da qual hospitais instalados pelos cubanos recuperam a
visão de pessoas que não sabiam que poderiam enxergar direito, tem mais de 3
milhões de pessoas que recuperaram a vista. Ela é feita em território
boliviano, por exemplo, tem argentinos que cruzam a fronteira para recuperar a
visão, operados em hospital boliviano por médicos cubanos.
Então,
é um tema de prioridade, não é uma situação de anomalia especial. O direito à
edução é um tema universal. Mesmo quando Cuba flexibilizou profissões privadas
para as pessoas conseguirem se virar além da economia estatal, é proibido ter
educação privada ou sistema de saúde privada, é a responsabilidade do estado
que responde em relação a toda a população.
Com a retomada das relações, vai
ficar mais fácil sair ou entrar em Cuba?
Cuba
já tinha liberado a saída para quem quisesse passear, só que é preciso
conseguir visto fora. Esse sistema vai continuar a existir, só que agora os
próprios Estados Unidos flexibilizaram a circulação de turistas, essa é uma das
necessidades de Cuba, um turismo norte-americano em grande quantidade, é um país
belíssimo, com condições de segurança que outros países não têm, além do
interesse de conhecer o país como tal.
Então,
eu acho que o turismo vai aumentar, sobretudo o turismo norte-americano, embora
isso ainda não esteja absolutamente escancarado, mas certamente vai se
intensificar. Tem voos já para o país, mas agora as companhias de aviação devem
intensificar os voos, já que o país oferece bons lugares para turismo. E isso
representa também maior comércio, já que os EUA liberaram a compra em maior quantidade
de dólares para os norte-americanos que vão a Cuba, comprar rum, charutos, etc.,
isso também vai aumentar.
Na sua avaliação, qual é o maior
problema enfrentado hoje pela população cubana e em que medida a retomada do
diálogo com a Casa Branca pode mudar esse cenário?
É
retomar um novo ciclo de expansão econômica em que o bloqueio era o problema
real, quer dizer, na semana passada mesmo, um banco alemão recebeu uma multa
muito forte por estar tendo relações com Cuba, então, o bloqueio...
Eles
têm mão de obra qualificada, têm condições de trabalho muito boas, e tudo o
mais, só que a dificuldade maior é que não podem explorar essas condições
favoráveis, porque qualquer navio que para em Cuba não pode parar nos Estados
Unidos durante seis meses.
Vários
obstáculos que as leis mais recentes intensificaram, isso dificultou, isolou
tanto que Mariel (porto de Mariel, construído com ajuda de financiamento
brasileiro) era uma tentativa de ajudar a romper esse isolamento. Agora tem
outro sentido, quer dizer, agora esse isolamento não existe, Mariel vai ser
fundamental no comércio da região e o Brasil acertou de mão cheia tendo
contribuído para sua construção, além de outros investimentos em Cuba.
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